"Só porque sou travesti": mãe perde guarda do filho por mostrá-lo de peruca
Quando gravou um vídeo do filho Julio*, 7, usando uma de suas perucas, a ativista e estudante de serviço social Bárbara Pastana não imaginou que, em poucos dias, essas imagens ganhariam tanta repercussão e que ela perderia a guarda do menino. Segundo o Conselho Tutelar de Belém (PA), ao expor a imagem do filho, ela teria violado o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que diz que é proibido "submeter a criança a vexame ou a constrangimento".
Bárbara, que é uma mulher transexual e ativista de longa data pelos direitos das pessoas LGBTQIA+ (Lésbicas, gays, bissexuais, trans e travestis, queers, intersexuais, assexuais e demais existências de gêneros e sexualidades) no Pará, ocupa o cargo de coordenadora da Casa Dia, órgão da Prefeitura de Belém que presta atendimento de saúde às pessoas com HIV.
Ela vê motivações políticas e transfobia na ação do Conselho Tutelar, que três dias depois de o vídeo ser publicado em seu perfil no Instagram, em abril, entregou Julio aos cuidados de um tio biológico, que é pastor, por afirmar que o menino teria sido submetido a uma situação vexatória.
A Universa, Bárbara conta que sempre compartilhou nas redes sociais cenas cotidianas da família — composta por ela, sua mãe e seu filho — incluindo quando o menino perdeu o primeiro dente ou quando tirava boas notas, por exemplo. A ativista diz que Julio brincava com frequência com suas perucas e acessórios, mas, no vídeo que repercutiu de forma negativa, ele aparece chorando.
Ela explica: "Tenho várias ornamentações de drag queen — peruca, sapatos, roupas — que ficam guardadas no armário desde que a pandemia começou. Ele entra, brinca, penteia as perucas. Naquele dia, encontrei uma peruca de cabelo curto e com franja na cômoda, voltei para a sala com ela e Julio começou a rir, porque meu cabelo é longo e estava diferente. Tudo para ele é brincadeira", diz. "Aí, para mostrar que ele não pode rir das outras pessoas, coloquei a peruca nele e falei: 'Deixa eu colocar em você para ver como fica'. Até falei que estava bonito, que ficou parecendo o Fiuk, mas ele não gostou e começou a chorar."
Horas depois que Bárbara publicou o vídeo, começou a receber ataques em suas redes sociais — a maioria, ela conta, não vinham de pessoas comuns, mas de políticos conservadores e opositores do atual prefeito da cidade, Edmilson Rodrigues (PSOL-PA), eleito em 2020 e que a nomeou coordenadora da Casa Dia em dezembro último.
As pessoas não estavam preocupadas com a integridade do meu filho, que nunca foi ameaçada, mas com a minha identidade de gênero e com o meu cargo político. A manchete era sempre 'mãe travesti do governo tal tenta mudar a sexualidade do filho'. Isso nunca aconteceu.
O deputado federal Delegado Éder Mauro (PSD-PA), líder da região Norte da bancada da bala na Câmara, se manifestou sobre o caso no Twitter diversas vezes, dizendo que Bárbara teria obrigado o filho a usar perucas contra a vontade dele e cometido "abuso psicológico".
Dois dias depois de o vídeo ter sido publicado, ela recebeu uma notificação para comparecer com Julio ao Conselho Tutelar. "Fiquei preocupada, claro. Imaginei que levaria uma advertência por ter publicado o vídeo, mas não mais do que isso, afinal meu filho tem uma vida boa, recebe uma ótima educação, tem um convívio familiar saudável."
Ela prestou depoimento a um grupo de conselheiros e, poucas horas depois, ouviu que não poderia levar o filho de volta para casa.
"Só fizeram isso porque eu sou uma mãe travesti"
Universa teve acesso a um documento emitido pelo Conselho Tutelar II de Belém que diz que Julio foi "colocado em situação vexatória" e que o vídeo "coloca em risco o desenvolvimento físico, mental, espiritual e social" da criança.
Só fizeram isso porque eu sou uma mãe travesti. O Conselho Tutelar foi transfóbico, da mesma forma que o deputado e outras pessoas que me atacaram nas redes sociais.
Julio nasceu com alguns problemas de saúde e sua mãe biológica, que já tinha três filhos, entregou o bebê aos cuidados de Bárbara quando ele tinha poucos dias de vida. O menino tem o nome das duas nos documentos: o da genitora como mãe e o de Bárbara como pai, já que ela não retificou seus documentos após a transição de gênero.
Depois da reunião no Conselho Tutelar, em abril, Julio foi entregue a um tio, João Natalino Gomes Pena, irmão de sua mãe biológica. Segundo Bárbara, o órgão sequer considerou deixar Julio aos cuidados de um parente dela, com quem ele está habituado a conviver.
"Não tiveram a sensibilidade de perguntar em que condições meu filho seria cuidado. O tio dele é uma pessoa muito boa, mas muito humilde. É pastor em uma igreja evangélica e vive de bicos e carrega o Julio para cima e para baixo, porque não tem com quem deixar. Meu filho estuda em uma das melhores escolas aqui do bairro, tem professora particular para ajudar na alfabetização. Faz dois meses que arrancaram meu filho de mim e, mesmo assim, continuo pagando a escola, para garantir que estará tudo certo quando ele voltar."
Nos últimos dois meses, Bárbara viu o filho algumas vezes. O caso aguarda o julgamento do caso na 1ª Vara da Infância de Belém.
Enquanto isso, Bárbara continua sendo alvo de ataques nas redes sociais e chegou a registrar um boletim de ocorrência por ameaças de morte, em 11 de maio. Segundo o documento, ao qual Universa teve acesso, um dos comentários diz: "Vai morrer, vagabunda. Já tem gente de olho em você".
"O Brasil é o país que mais mata pessoas trans pelo simples fato de serem trans, imagina quando elas são incentivadas a acreditar que uma travesti está fazendo mal para uma criança. Me demonizaram. Essa situação me deixa ainda mais vulnerável para ser mais uma vítima da transfobia."
Decisão do Conselho Tutelar é ilegal, diz advogada
Para a advogada Luanda Pires, presidente da Associação Brasileira de Mulheres Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Intersexo (ABMLBTI), "a separação de uma mãe de sua prole única e exclusivamente em razão de uma brincadeira em família divulgada nas redes sociais é precipitada e ilegal".
Luanda acredita que "trata-se de mais um episódio de transfobia institucional" e afirma que "o fato da criança ter chorado no vídeo não quer dizer que ela tenha sido exposta a constrangimento ou vexame e muito menos é fato capaz de fazer com que uma mãe perca a guarda do filho".
"A utilização de um adereço como a peruca não é e nunca foi capaz de interferir na identidade de gênero ou orientação sexual de nenhuma criança. Esse tipo de alegação é LGBTfóbica e o Conselho Tutelar, que é um órgão encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, não deveria tomar qualquer tipo de decisão que fomente práticas discriminatórias, que oprima pessoas ou exclua famílias", critica a advogada.
Universa procurou o Conselho Tutelar de Belém, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem. Em nota, o Ministério Público do Pará disse que não se manifestaria porque o processo está sob sigilo de Justiça por envolver um menor.
*Nome fictício usado para proteger a identidade da criança
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