"Escolhi Esperar": projeto sugere abstinência sexual para adolescente em SP
Evangélico, o vereador Rinaldi Digilio (PSL-SP) diz que desde os 16 anos conversa com jovens dentro de igrejas sobre esperar o "momento certo" para começar a ter relações sexuais, "antes mesmo de existir ministra Damares". Essa vivência, diz, o inspirou a criar o "Escolhi Esperar", um projeto de lei que quer instituir no calendário oficial de São Paulo uma semana de palestras com orientações para evitar a gravidez de adolescentes.
O projeto de lei que será votado nesta quinta-feira (17), na Câmara Municipal, leva o mesmo nome do movimento criado pelo pastor Nelson Neto Junior em 2011 que prega o sexo após o casamento. E vai na mesma linha da campanha lançada em 2020 pela ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves: a inclusão da abstinência nos debates sobre educação sexual nas escolas.
Damares, inclusive, esteve na segunda-feira (14) na Alesp (Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo), mas tanto Digilio quanto a assessoria da ministra negam que eles tenham se encontrado ou mesmo falado sobre o tema em votação na Câmara. "Nunca conversei com a ministra Damares. Desde os meus 16 anos trabalho com a juventude cristã na igreja e essa prática de orientação [sobre esperar] já existia. Nem se tinha ouvido falar em ministra Damares", diz Digilio, 46.
Apesar das coincidências, o vereador afirma a Universa que sua proposta nada tem de cunho religioso. "Para macular o projeto, estão tentando vinculá-lo à religião. Ele nem será orientado por religiosos, mas por profissionais da saúde e por professores", diz. "Já existem leis e campanhas sobre contraceptivos, mas são métodos secundários. As pessoas, às vezes, querem conscientizar sobre a gravidez precoce mas chegam dizendo: 'Olha aqui a camisinha'."
A proposta é uma prevenção primária e que não vai extinguir nenhum outro método, mas falar que esperar também é uma escolha. Você não vai encontrar a palavra 'abstinência' no projeto. E a escolha é uma decisão, não será colocada goela abaixo.
O projeto de Digilio surge quando os índices de gravidez adolescente na capital paulista vêm apresentando queda nos últimos cinco anos, segundo a Secretaria de Saúde. De 2016 para 2020, o número de mães entre 10 e 19 anos na cidade passou de 12,20% para 9,77%. Em 2020, foram 12.490 nascidos vivos de adolescentes, sendo 370 de mães entre 10 e 14 anos, e 12.120 de mães entre 15 a 19 anos.
Já no estado de São Paulo, de 2019 para 2020 a redução das internações por gravidez nessa faixa etária foi de 11%, segundo o Ministério da Saúde: de 65.512 para 58.419.
No Brasil, a cada mil adolescentes, 53 engravidam precocemente, de acordo com o relatório do UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas) divulgado em 2020.
Texto da lei não explica como será o programa
O texto da lei pouco entrega o que na prática será feito. Nele, Digilio propõe uma semana de palestras sobre medidas preventivas e educativas aos profissionais de saúde e educação, exposição com cartazes citando eventuais causas, consequências e como prevenir a gravidez precoce, além de atividades para o público-alvo e monitoramento de possíveis casos para avaliação e cuidado.
Ele escreve ainda que as escolas de ensino público e privadas poderão fazer parcerias com UBS (Unidades Básicas de Saúde), hospitais, ONGs, e outras entidades afins para a implementação dos objetivos pretendidos. O teor do material divulgado, locais de palestras e valores a serem gastos, segundo o vereador, serão determinados pelo prefeito Ricardo Nunes (MDB-SP) no ato da regulamentação da lei.
"Grupos religiosos podem entrar em escolas"
O PL já passou por uma primeira votação e recebeu parecer favorável da Secretaria Municipal de Saúde. A pasta pediu apenas que os eventos não sejam realizados nas duas primeiras semanas do mês de março, dedicadas a ações pelo Dia Internacional da Mulher. Digilio então resolveu mudar o nome do projeto para "Programa Escolhi Esperar", mas assegura que a ideia é a mesma: que as atividades aconteçam dentro de uma semana.
A vereadora Juliana Cardoso (PT-SP) enviou ofício para a secretaria pedindo um parecer técnico sobre qual pesquisa teria se debruçado para apoiar o projeto. Ela lembra também, em seu requerimento, que a pasta já tem programas voltados para evitar a gravidez precoce. A secretaria, no entanto, informou apenas que não se opõe à proposta.
Por e-mail, a Prefeitura de São Paulo informa que o parecer da Secretaria da Saúde é técnico, e por isso "não autoriza nenhuma ilação político-ideológica". E acrescenta:
"Sobre a abstinência sexual ser um método eficaz de evitar a gravidez precoce, essa escolha cabe à adolescente, e seu projeto de vida. A abstinência não será utilizada pelo município como política pública de prevenção da gravidez na adolescência."
Cardoso lista suas dúvidas sobre o texto da proposta:
"O texto desse projeto é superficial. Ele não especifica a forma como se dará a conscientização da gravidez precoce. Tem que colocar o que, de fato, vão fazer. Vai falar sobre uso de contraceptivo, sexualidade, violência? E qual o tipo de monitoramento com outros órgãos? Qual a capacitação dos profissionais? Não pode ser um projeto fechado, porque quando for sancionado na prefeitura, ele [Digilio] pode usar como diretriz o programa religioso e conservador Escolhi Esperar".
Outro receio dela diz respeito ao direcionamento de possíveis verbas a grupos religiosos e a atuação deles dentro de escolas e hospitais. "Normalmente, em propostas, não se fala sobre orçamento, mas nos EUA foi usado recurso público para as organizações sociais religiosas. Não tenho dúvidas de que esses grupos vão entrar em salas de aula e postos de saúde."
Para tentar adiar a votação do projeto, Juliana vai levantar esses questionamentos na Casa nesta quinta. A ideia é também que as atenções se voltem para outra votação, da proposta da vereadora Erika Hilton (PSOL-SP), que pretende instituir a Semana Maria da Penha nas escolas no município. O objetivo é promover a reflexão e aumentar a conscientização sobre violência de gênero. Fora da Câmara, está programada ainda uma manifestação de coletivos feministas e movimentos sociais.
"Esse projeto bate diretamente na vida das meninas. Mulheres e meninas precisam de políticas públicas para se sentirem seguras. A sociedade tem que entender que não pode ficar sob nosso ombro mais uma responsabilidade de ser guardada", avalia Juliana.
"Abstinência é condenação do sexo como pecado"
Pioneira em estudos de gênero no país e consultora da OMS (Organização Mundial da Saúde), a cientista social Carmen Barroso afirma que os programas eficazes para evitar a gravidez na adolescência são os que trazem não só informação sobre sexo, sexualidade e contracepção, mas aqueles que olham para a situação social familiar da menina.
"As pesquisas sobre abstinência mostram que existe certo efeito em retardar um pouco a atividade sexual, mas isso não a elimina, a taxa de gravidez na adolescência acaba sendo a mesma com ou sem essa proposta", atenta a especialista que, em 2016 recebeu o Prêmio de População da ONU (Organização das Nações Unidas).
A grande motivação da abstinência é a condenação do sexo como pecado. É uma coisa muito ligada a tendências políticas autoritárias que manipulam o medo da sexualidade. Quem quer ter essa visão, que tenha, mas não imponha à sociedade.
Proposta teve baixa eficácia em outros países
Além das inspirações pessoais, Digilio diz que foi estimulado por projetos parecidos adotados nos EUA e em Uganda e que, segundo ele, reduziram a quantidade de jovens grávidas e também com HIV.
Em amplo material divulgado em janeiro do ano passado sobre o tema, a SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria) aponta que o programa americano que estimula unicamente a abstinência sexual entre as adolescentes até o casamento vem recebendo várias críticas tanto pelo alto custo (175 milhões de dólares/ano) como pela baixa eficácia de resultados.
"Outro fato a ser discutido é que esses programas não instruem as adolescentes quanto ao uso de preservativos ou contraceptivos, sendo, portanto, considerados uma violação aos direitos humanos", observa a entidade no relatório.
A coordenadora do Programa Estadual de Saúde do Adolescente e chefe do ambulatório de ginecologia e obstetrícia do Hospital das Clínicas de São Paulo, Albertina Duarte Takiuti, diz que a imposição e o "não" para o adolescente já gera uma ação, um gatilho para ele fazer o que quiser.
"As formas impositivas de abstinência não deram resultado em nenhum programa. Treze estados americanos que pregaram a abstinência registraram aumento da gravidez. Todos os programas com êxito respeitaram o cotidiano dos adolescentes. São Paulo reduziu, em 20 anos, 55% da gravidez na adolescência de 10 a 20 anos", diz ela, que é também professora da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).
Em seus mais de 40 anos trabalhando com adolescentes, a ginecologista ensina que, para além da informação, é preciso desenvolver o autocuidado e a autoestima desse público. "Trabalhamos em rodas de conversa sobre prevenção. Esse diálogo e essa relação de acolhimento fazem com que os adolescentes tenham confiança nos profissionais de saúde, professores e em seus pares."
Bolsonaro também sancionou programa de prevenção
Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou lei instituindo a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, entre os dias 1 a 8 de fevereiro.
No texto publicado no seu site, o governo federal informa que o Brasil tem conseguido reduzir os casos de gravidez na adolescência nos últimos anos com ações e campanhas de prevenção e educação sexual, além de avanços científicos e da evolução dos métodos contraceptivos. E decreta: "educação sexual é fundamental para evitar gravidez na adolescência". Em nenhum momento fala-se em abstinência.
Numa alusão a essa lei, o governo de São Paulo lançou, no ano passado, a campanha "Gravidez na Adolescência é para a vida toda". A iniciativa conta com ações por meio das redes sociais, presenciais e concurso de YouTubers para estudantes da rede pública estadual. No site da Secretaria da Justiça e Cidadania, que hospeda a campanha, há uma lista com 12 opções de métodos contraceptivos — entre eles, a camisinha e o DIU (dispositivo intrauterino). Nenhuma linha sobre abstinência.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.