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Após HIV, ela pesquisa vírus e trabalha para aproximar pessoas trans do SUS

Pisci Bruja Garcia de Oliveira, 33 anos, é pesquisadora do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP  - Arquivo pessoal
Pisci Bruja Garcia de Oliveira, 33 anos, é pesquisadora do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP Imagem: Arquivo pessoal

Mariana Gonzalez

De Universa

07/12/2021 04h00

A trajetória profissional de Pisci Bruja Garcia de Oliveira começou nas áreas de humanidades — ela é formada em Ciências Sociais, passou pela Sorbonne, em Paris, e se tornou mestre em Antropologia Social. O que ela não imaginava quando começou a graduação na Unicamp (Universidade de Campinas) em 2009 é que anos depois estaria trabalhando na área da saúde, como pesquisadora do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

O ponto de virada da carreira foi um diagnóstico positivo para HIV, aos 24 anos: "Meu diagnóstico me transformou, transformou minhas perspectivas. Se antes eu queria ser diplomata, me vi mergulhada nas questões de saúde e nas disputas que a gente precisa enfrentar para ter acesso a tratamento no sistema público."

Em entrevista a Universa por telefone, de uma das salas do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, em São Paulo, onde trabalha, a pesquisadora de 33 anos fala sobre a ausência de pessoas trans como ela na medicina e de sua trajetória até o posto que ocupa hoje, realizando pesquisas e projetos que ajudem a aproximar especialmente pessoas negras e transgênero do sistema público de saúde.

"Quase morri em decorrência da Aids"

"Meu processo de adoecimento foi muito rápido. Mesmo quando a medicação segurou o avanço da Aids, tive um adoecimento mental. Demorei uns três anos para conseguir realmente desenvolver uma qualidade de vida e isso só foi possível porque eu me conectei com outras pessoas que vivem com HIV e Aids — pessoas que falavam sobre a sua sorologia, rompiam com o silêncio", lembra.

Assim, Pisci criou, junto com outras pessoas vivendo com o mesmo diagnóstico, o coletivo Loka de Efavirenz, grupo que produz performances, intervenções artísticas, artigos acadêmicos e projetos de políticas públicas em parceria com a vereadora Carolina Iara (PSOL-SP), que também é parte do coletivo.

"Quando a gente rompe o silêncio, muita coisa acontece: a gente fica suscetível a uma série de violências, mas se isso é feito em espaços seguros, conseguimos criar conexões e redes de apoio que, para mim, foram muito importantes para me sentir bem, encontrar paz, ressignificar o estigma que eu mesma carregava sobre HIV e Aids", conta.

No mestrado em Antropologia Social, que concluiu há uma semana, Pisci Bruja estudou a criminalização da transmissão do HIV — o que, ela diz, ajudou a validar o conhecimento que ela e os colegas produzem há alguns anos no coletivo Loka de Efavirenz.

Agora, ela trabalha na Faculdade de Medicina da USP elaborando estratégias para aproximar pessoas trans e racializadas do SUS e participando de pesquisas sobre a vacina e a cura do HIV.

Para isso, pesquisadores tentam identificar o vírus que está inativo no corpo para tentar bloqueá-lo dentro da célula, por meio de uma técnica chamada em inglês de block and lock, com uso de uma medicação que não é contínua. Hoje, para controlar o vírus, é preciso fazer uso constante e rigoroso dos antirretrovirais. Há, ainda, uma outra pesquisa que busca a cura definitiva, usando técnicas de engenharia genética para tentar eliminar o HIV do genoma humano.

O papel de Pisci Bruja neste processo, como antropóloga, é tentar entender como a comunidade percebe a possibilidade de uma cura definitiva para o vírus.

"Estou desenvolvendo um estudo de percepção da cura do HIV entre pessoas trans, travestis e negras através de uma residência artística. Muita gente sonha muito com essa cura, mas, para nós, pessoas que vivem com HIV e Aids, essa é uma possibilidade ainda muito distante, utópica até", fala.

Pisci Bruja: "Embora o HIV seja democrático em termos de infecção, a sociedade não é" - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Pisci Bruja, pesquisadora: "Embora o HIV seja democrático em termos de infecção, a sociedade não é"
Imagem: Arquivo pessoal

"A transmissão do HIV é democrática. A sociedade não"

A partir dos anos 1990, o Brasil se tornou referência no enfrentamento ao HIV e à Aids, com distribuição gratuita dos medicamentos antirretrovirais e acompanhamento gratuito à população com este diagnóstico.

Na prática, Pisci percebe, o cenário não é assim tão inspirador.

"Hoje, o Brasil tem controle da epidemia de HIV/Aids, tem tecnologia para isso, medicamentos antirretrovirais distribuídos pelo SUS e a gente consegue ter qualidade de vida se tiver acesso garantido a esses remédios. Mas o Brasil não é igual para todo mundo. A população negra e também a população transgênero e travesti são destituídas de direitos e têm acesso muito dificultado às políticas públicas".

Prova disso, conta, é que não existe um centro de referência em HIV e Aids no Capão Redondo, onde ela cresceu. "A pessoa vai gastar R$ 10 reais de condução, ida e volta, e esse é só um dos obstáculos. Ela precisa primeiro se entender enquanto cidadã, enquanto alguém que tem direito à saúde, precisa ter acesso a informação, autonomia sobre o próprio corpo, conhecer a quais riscos está suscetível e quais tecnologias em saúde existem para ajudá-la."

Pisci conta que seus primeiros contatos com o sistema público de saúde se deram por conta do HIV: "Para muitas pessoas LGBTQIA+, essa é a primeira porta de acesso ao SUS. Eu mesma já entrei no sistema em processo rápido de adoecimento. Isso me incomoda porque, além de não trabalhar a prevenção, a gente sofre de outros problemas de saúde como qualquer outra pessoa, somos um corpo completo, que precisa ser cuidado de forma integral".

O resultado é que, apesar de toda essa política de combate ao vírus, ainda são registradas mais de 12 mil mortes por ano em decorrência de HIV e Aids no Brasil. Entre essas pessoas, quase um terço é da população LGBTQIA+ e pessoas negras morrem três vezes mais que as pessoas brancas.

"Embora o HIV seja democrático em termos de infecção, a sociedade não é. E a mortalidade mais alta entre pessoas negras e LGBTQIA+ é fruto da falta de acesso e da marginalização, não de um determinismo biológico".

"Amo esse trabalho, mas mato um leão por dia"

A trajetória de Pisci Bruja ainda é exceção no Brasil — afinal, segundo a Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 90% das pessoas T (homens e mulheres transexuais e travestis) no Brasil estão fora do mercado formal de trabalho e dependem da prostituição para viver.

"Se 90% de nós estão na prostituição é porque as pessoas não nos querem nas famílias, nas empresas, nas relações afetivas. Não querem andar de mãos dadas com a gente à luz do dia. Isso nos afasta de todos os espaços e gera falta de oportunidades."

A pesquisadora afirma ser uma exceção à estatística e aponta que chegou à Faculdade de Medicina da USP porque construiu grande parte da carreira enquanto uma pessoa cisgênero. "Minha transição foi tardia, comecei aos 27. Por isso, tive oportunidades. E quando a gente tem oportunidade, vai muito longe", afirma.

A ausência de pessoas trans na academia e na medicina é gritante: "Aqui no centro de pesquisas clínicas do HC tem três pessoas T: duas travestis e um homem trans, entre centenas de pessoas. Quando eu ando pelo complexo, não vejo outras pessoas como eu, a não ser alguns pacientes — e mesmo assim são poucos."

Na primeira semana de trabalho, quando foi almoçar no refeitório, um local que só os funcionários têm acesso, um colega perguntou, desconfiado, o que ela estava fazendo lá. "Ninguém esperava ver uma travesti trabalhando num espaço como esse. Estão acostumados a nos ver na esquina sendo putas, mas nunca em postos de poder, produzindo conhecimento", aponta.

"A gente não chega nesses espaços de pesquisa e produção de tecnologias em saúde enquanto funcionárias, e muitas vezes também não chega enquanto participante de pesquisas clínicas, porque não sente que vai ser respeitada, que aqueles profissionais têm um comprometimento ético e político com a nossa saúde. Esse é um trabalho que eu tento desenvolver aqui: fazer educação comunitária, aproximar pessoas T do sistema público de saúde e mostrar que o que a gente está produzindo também é para elas."

Além de sentir que não pertence a esses espaços, nem como paciente e nem como profissional, a pesquisadora enfrenta uma jornada dupla: "Além de fazer meu trabalho, preciso educar outros pesquisadores a me respeitar. Essa não é a minha função, mas é um desafio enquanto uma travesti dentro do sistema de saúde. Eu amo de trabalhar com isso, mas tenho que matar um leão por dia".