Maternidade LGBT: 'Disse a meu filho que ele não tem pai porque tem 2 mães'
"A educação que vamos dar será toda baseada no amor", afirma a médica Thais Aguiar do Nascimento, 48, que aguarda com ansiedade a chegada de Luis Felipe, seu primeiro filho com a esposa, a enfermeira Alais da Silva, 35. A gestação já passou das 39 semanas, e o bebê pode nascer a qualquer momento.
A ideia de ter um filho surgiu na relação em 2018, quando completaram dez anos juntas. As duas começaram a perseguir o sonho de se tornarem mães, com perseverança e companheirismo. "A única forma de alcançar o impossível é acreditar que é possível", crê Alaias, que tentou fertilização in vitro por três anos, mas sem sucesso.
"Foi de 2018 a 2020, gerando um desgaste muito grande financeiro e, sobretudo, emocional", relata. Ela, que é empresária, também conta que não se sentiu muito confortada pela equipe médica que a atendeu. "Falavam coisas desagradáveis como: 'Até que já atendi mulheres de casais como o teu', como se fôssemos algo estranho, incomum.'"
Em 2021, o assunto gravidez voltou às conversas do casal. Porém, devido ao passado recente de insucessos, Alais tinha dúvida se deveria enfrentar todo o procedimento médico novamente. As duas, então, resolveram procurar uma outra clínica, desta vez em São Paulo. Seus óvulos foram coletados, houve a transferência de apenas um embrião e, logo na primeira tentativa, o procedimento funcionou.
"Ao ficar grávida, o modo como eu lido com o mundo mudou. A gente quer ser a melhor pessoa para dar o melhor para o nosso filho", diz Alais. "Mas estamos cientes de possíveis preconceitos dos quais Luis Felipe poderá ser alvo por ser filho de um casal homoafetivo", afirma Thais.
Sonho possível
O sonho de engravidar entre mulheres em união homoafetiva pode ser realizado por meio de dois tratamentos, segundo Thais Domingues, médica especialista em reprodução assistida na Huntington Medicina Reprodutiva.
"Elas podem fazer tanto a inseminação intrauterina, que consiste em pegar o sêmen doado e colocar dentro do útero dela. Geralmente, isso é feito depois de induzir o aumento do número de folículos, estruturas que abrigam óvulos, com o objetivo de escolher dois ou três deles. A maioria, porém, acaba optando pela fertilização in vitro por ter uma maior taxa de sucesso e pelo trâmite de seleção do sêmen", diz.
"Vale lembrar que este crescimento do folículo é muito semelhante com o ciclo menstrual: as mulheres têm vários folículos que podem crescer, mas, naturalmente, cresce apenas um. Então, é dada mais medicação para que cresçam mais folículos. Na inseminação, usamos dois ou três. Na fertilização, oito a doze", explica
Domingues explica que as pacientes com menos de 35 anos, que não têm endometriose e que apresentam trompas funcionando normalmente, podem fazer tanto a inseminação quanto a fertilização in vitro. Já para as que têm mais de 37 anos, com uma reserva ovariana mais baixa e/ou alteração nas tubas, o mais indicado é a fertilização.
Como lidar com o preconceito?
A médica Thais Domingues comenta que é comum os casais homoafetivos terem um certo receio quanto a possíveis preconceitos com os quais os filhos e filhas podem ter de lidar por fazerem parte de um outro tipo de estrutura familiar, que não a formada por um pai e uma mãe. "Em muitos casos, indicamos o acompanhamento psicológico", diz.
Para a fisioterapeuta Maria*, 38, mãe de um menino de 5 anos e de uma menina de 2, a conversa com os filhos sempre foi o mais importante. "Já disse que eles não têm papai porque têm duas mães. Falei toda a verdade para o meu filho sobre a fertilização in vitro e o relacionamento das mães, pois acredito que isso seja fundamental".
Na escola, o garoto foi o primeiro aluno fruto de um relacionamento homoafetivo. "Foi incrível como nos receberam. Atualmente, já há outras famílias com o mesmo padrão", completa Maria, que ainda diz, toda orgulhosa, que, no fim de 2021, a escola parabenizou o casal pela educação das crianças. "Só afirma tudo o que sempre pregamos, que o amor é fundamental independentemente de qualquer coisa."
Maria pediu para não ser identificada porque não expõe, em seu trabalho, que vive uma relação homoafetiva.
Ainda que tenha medo de possíveis reações das pessoas de seu convívio, Maria não deixou de ir atrás do seu sonho, que só apareceu depois dos 25 anos. Até então, ela conta que nunca havia pensado em ser mãe e queria se dedicar à carreira.
Hoje, porém, a alegria de sua vida é cuidar dos filhos. "Não tenho babá, estou presente o tempo todo. É o meu maior prazer", confessa.
"Expliquei a minha filha que nasci menino"
Jacqueline Rocha Côrtes se tornou mãe aos 51 anos, há 11. Foi nessa idade que o processo de adoção de Gilson e Luara foi concluído. À época, a menina tinha 2 anos e 8 meses, e o garoto, 9 anos. A princípio, ela e o marido, Vitor José Mouta Côrtes, hoje com 44 anos, queriam apenas uma criança, independentemente da cor de pele e que tivesse até 3 anos de idade. Porém, a realidade brasileira mostra que crianças negras com irmãos e não tão jovens são a maioria na lista para a adoção. "Vimos as fotos dos dois e pronto: decidimos adotá-los", diz.
Nos quatro primeiros anos anos, seu filho e sua filha não sabiam que ela era uma mulher trans. A revelação só foi feita após a finalização das gravações de um documentário sobre a vida dela. Disponível no Globoplay, "Meu Nome é Jacque", dirigido por Angela Zoé, narra a trajetória pessoal e profissional de Jacqueline, desde a infância, quando se sentia incomodada por ter nascido em um corpo de homem, até a fase adulta, quando se tornou ativista pelos direitos humanos e trabalhou com movimentos sociais e para o governo e entidades como a UNAIDS, braço da ONU (Organização das Nações Unidas) para campanhas e projetos sobre HIV/Aids.
"Um dia, chamei o Gilson e mostrei a ele uma foto minha com 12, 13 anos. Na imagem, era um menino 'dando pinta'. Ele olhou para mim e disse: 'Nossa, você era bonita e se tornou uma mulher mais bonita ainda. Estou muito feliz em saber que você é minha mãe. Te amo", lembra, emocionada.
Já com Luara, o papo aconteceu enquanto assistiam à animação "Frozen", quando a protagonista canta "Livre Estou". Naquele momento, Jacque apertou o 'pause' e revelou que também se sentia livre, pois havia nascido menino e se tornado menina.
A partir daí, Jacque foi alvo de várias perguntas de uma menina de 7 anos bastante curiosa. "'Você tinha peru? Como você virou mulher?' Expliquei que, sim, que havia nascido menino, mas que não era feliz, que me achava estranha. Disse que fui ao médico e que ele me ajudou a virar menina. Ela, na hora, perguntou: 'Eu também nasci menino e virei menina?' Respondi: 'Não, você já nasceu menina'. Foi, então, que ela comemorou: "Ah, que bom. Eu não quero ser menino, não. E você é minha mãe para sempre'."
Resolvida a questão dentro de casa, Jacqueline, que atualmente mora com o marido e a filha na capital paulista —o filho mais velho reside em Campinas, no interior de São Paulo, onde estuda na Unicamp (Univerisdade Estadual de Campinas)—, diz que, no dia a dia dos filhos, pouco lidou com preconceitos. "Em reuniões escolares, logo converso com as famílias das outras crianças. Até para que saibam que, naquele grupo, há uma mãe transexual, sim".
Como toda mãe, seja qual for a orientação sexual e a identidade de gênero, Jacqueline vive os dilemas da maternidade. "Não sei bem como explicar, mas parece que a mãe tem ferramentas internas e externas para lidar com as questões subjetivas de seus filhos. É para o nosso colo que geralmente eles voltam quando precisam". Para ela, sua missão é fazer com que seu filho e sua filha evoluam. "Só precisamos estar atentas para acolhê-los", finaliza.
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