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'Vivo com HIV há quase 13 anos. Resultado positivo não é o fim'

A cearense Sabrina Luz, 40 anos, é mulher trans, vive com HIV há quase 13 anos e já sentiu o preconceito na pele - Arquivo pessoal
A cearense Sabrina Luz, 40 anos, é mulher trans, vive com HIV há quase 13 anos e já sentiu o preconceito na pele Imagem: Arquivo pessoal

Fernando Barros

Colaboração para Universa, em Salvador

01/12/2022 04h00

A data de 1° de dezembro marca o Dia Mundial de Luta contra a Aids e uma das vozes que tem somado esforços hoje no país na conscientização sobre essa infecção sexualmente transmissível é a da cearense Sabrina Luz, 40 anos. Ela é mulher trans, vive com HIV há quase 13 anos, já sentiu o preconceito na pele e usa seu perfil no Instagram para difundir informações sobre o assunto, além de combater estigmas sobre as pessoas que vivem com o vírus.

"Já se passaram mais de 40 anos da descoberta do HIV e ainda há muito desconhecimento. As pessoas precisam saber que o vírus não se transmite de qualquer forma, que quem vive com ele é normal como qualquer outra pessoa e que viver com HIV não é o fim", defende Sabrina. A Universa, a ativista conta um pouco da sua história —leia a seguir.

"A Sabrina Luz nasceu quando eu tinha 27 anos, numa parada LGBTQIA+ em Fortaleza (CE). Naquele dia, eu me vesti de mulher pela primeira vez na vida e, desde então, decidi que seria assim para sempre. Na época, eu trabalhava numa casa de família e minha patroa me deu muito apoio. Já entre os meus próprios familiares a aceitação foi bem difícil. Não tive o prazer de contar para eles e o jeito como souberam não foi legal.

No dia em que me vesti de mulher, parentes de meu pai tiraram fotos minhas escondidos e levaram para o interior, onde ele morava com minha mãe. Lá, virei chacota na vizinhança e, quando minha mãe viu as imagens, me ligou chorando. Ela disse para eu não me vestir daquela forma, que aquilo era feio.

Quando eu ia na casa dos meus pais, era muito difícil. Minha mãe contava piadas, dizia que eu devia ter cortado o cabelo e colocado uma roupa de homem. Já meu pai não gostava nem de me ver e chegava a falar para minha mãe que era melhor eu ir logo embora. Era muito doloroso ouvir aquilo e fiquei por um tempo distante deles. Hoje, nossa relação está melhor, mas não foi fácil.

Nascimento de Sabrina e a descoberta do HIV

Eu estava doente há uns seis meses e não conseguia descobrir o que era. Quando o médico pediu para fazer o exame e deu positivo, fiquei triste porque a gente acha que nunca pode acontecer com a gente. Na hora do diagnóstico, eu não chorei, não disse nada para a psicóloga, ficou dentro de mim aquele entalo.

Eu disse para mim mesma 'não vou chorar, não vou desmontar', mas na hora a cabeça da gente fica girando, parece que você levou uma paulada, surgem um monte de porquês.

Quando eu botei meus pés fora do hospital, eu tinha a sensação de que todo mundo que me olhava dizia que eu estava com Aids. É muito louca essa sensação.

Eu não sabia nada e, graças a Deus, a psicóloga me ajudou muito no início. Minha carga viral estava boa, mas comecei logo o tratamento com as medicações. Como passei a ter muitas reações, no entanto, 15 dias depois, fui ao médico e ele suspendeu. Quando voltei com a medicação, já era outro tipo de antirretroviral e nunca mais senti nada, nem uma reação sequer: enjoo, náusea, nada.

Na época, acabei descobrindo também que estava com tuberculose e câncer de pele, mas fazendo os respectivos tratamentos fiquei curada de ambas as doenças e segui com as minhas medicações antirretrovirais. Hoje, estou muito bem. Em janeiro de 2023, vou fazer 13 anos vivendo com HIV e há 10 estou indetectável [quando o vírus não circula mais pelo organismo e a pessoa não transmite a doença].

'Com dificuldades financeiras, fui acolhida numa instituição social'

Sa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Sabrina Luz: 'Hoje, estou casada e feliz. Meu esposo é um homem trans e vivemos um relacionamento sorodiscordante'
Imagem: Arquivo pessoal

Quando eu descobri minha sorologia positiva, eu trabalhava numa casa de família e fui muito sincera com eles, falando sobre o resultado. Uns 15 dias depois, mais ou menos, fui dispensada porque eles disseram que não tinham mais como pagar pelos meus serviços. Sem emprego e com dificuldades financeiras, fui morar numa instituição que acolhe crianças e adultos com HIV no Ceará, a Casa Sol Nascente.

Fiquei lá durante um ano e três meses e eles me deram uma oportunidade de trabalho. Era para atuar no telemarketing pedindo doações para a organização. Não foi fácil, porque pedir doações é complicado. Eu tinha vontade de desistir todos os dias porque não conseguia nada, mas continuei porque eu não queria viver o resto da minha vida dentro de uma instituição. Até hoje, sou muito grata a eles, porque foi lá que minha vida ganhou um novo rumo.

'Acham que ser trans ou travesti é sinônimo de HIV'

No início, eu fiquei com muito receio de falar abertamente que eu vivia com HIV. Tinha medo do preconceito porque parece que muitas pessoas se fecham para buscar informações. Por exemplo, teve gente que conheci e, quando eu disse que vivia com o vírus, não quis mais ter contato comigo. Em outra ocasião, uma ex-patroa me chamou para almoçar na casa dela e, depois que terminamos, ela pegou todas as coisas que eu tinha usado (prato, colher, copo) e colocou dentro de uma bacia com água fervente.

Naquele momento, eu me senti muito mal, porque não precisava fazer aquilo. O HIV não se transmite daquela forma, usando os talheres. Eu acho também que ainda existe muito estigma sobre nós de que toda mulher trans ou toda travesti vive com HIV. Pensam que pegamos o vírus porque somos trans ou travestis e foi exatamente para desfazer visões como essa que decidi usar minha rede social e me tornar uma ativista na conscientização sobre o HIV.

Minha ideia é mostrar o que as pessoas não sabem do vírus. Muita gente só conhece aquela realidade da pessoa doente, com a pele feia, aquela pessoa debilitada, então eu uso a minha rede social para mostrar esse outro lado: que a gente pode, sim, viver bem, que podemos casar, construir uma família, ter filhos, trabalhar, fazer tudo que a gente quiser, porque a infecção pelo HIV não é o fim. Seguindo o tratamento, a vida não acaba após o diagnóstico e é possível continuar fazendo planos e realizar sonhos.

Hoje, por exemplo, estou casada e feliz. Meu esposo é um homem trans e vivemos um relacionamento sorodiscordante [quando um dos parceiros não tem o HIV]. Em janeiro, faz três anos que casamos no religioso e, graças a Deus, ele é uma pessoa que me aceitou do jeito que eu sou. Nunca me tratou com indiferença e nem tem vergonha por eu ter HIV. Pelo contrário, ele me acompanha nas consultas e, às vezes, ele mesmo vai pegar minha medicação no hospital. É uma pessoa que veio para somar em minha vida.

'Levamos quentinhas às pessoas em situação de rua'

Devido a tudo que já passei, sou muito sensível a causas sociais e tenho muita solidariedade por quem passa dificuldade. Desse modo, criei o projeto 'Ser luz'. A iniciativa surgiu no dia do meu aniversário quando pedi aos meus seguidores e amigos que, como presente por aquela data especial, contribuíssem de alguma forma para eu preparar quentinhas e levar para as pessoas em situação de rua no centro de Fortaleza.

O pessoal aderiu e a ação continuou. Uma vez por mês, a gente faz esse ato de solidariedade, levando quentinhas, roupas, água, fralda, tudo que recebemos de doações, para distribuir entre as pessoas em situação de rua, porque são as mais julgadas e menos favorecidas na nossa sociedade. Então, procuro fazer essa pequena contribuição. É uma forma de levar amor para esses irmãos."

Sabrina Luz, 40 anos, é ativista e influenciadora digital na conscientização sobre o HIV e vive em Caucaia (CE)