Ela levou tiro por vingança de cafetina e ficou tetraplégica: 'É um luto'

O dia 7 de julho de 2013 é uma data inesquecível para Paula Maia, 34, mas não por uma razão agradável. A mulher transgênero, aos 23 anos na ocasião, sofreu uma tentativa de assassinato em Brasília e ficou tetraplégica.

Na gíria do mercado do sexo trans, a expressão 'mandar um doce' significa intimidação ou vingança, pode ser uma agressão física ou mesmo homicídio. A motivação geralmente envolve confusões entre cafetinas e profissionais do sexo, em que a lei do mais forte dita as regras e a impunidade impera.

Paula se considera uma mulher forte, e antes do atentado ela já havia superado os danos da aplicação do silicone industrial e a exploração de cafetinas experientes, mas sobreviveu para contar a sua história:

"Na minha vida tudo sempre foi muito precoce. Aos seis anos, já notava que havia algo diferente em mim. Aos 13, me identifiquei como uma mulher trans e já quis iniciar a transição de gênero.

Não sofri rejeição da família, exceto do meu pai. Ele era alcoólatra, me agredia diariamente por não me aceitar como gay na época. Por isso, saí de casa aos 13 e fui morar com quatro amigas trans. Logo depois, ele abandonou a família, sumiu e nunca mais tivemos notícias dele.

Ali comecei o uso de hormônios, e não demorou muito para elas me apresentarem a rua. Ainda aos 13, entrei na prostituição. Aos 16, já tinha silicone industrial no corpo.

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Imagem: Arquivo pessoal

Passei por três cafetinas, fui muito explorada por uma delas, devo ter dado a ela uns R$ 100 mil em um ano, porque elas vão financiando coisas para nós pelo dobro, triplo do valor normal. Lembro dela ter financiado o meu peito [prótese] e nariz, depois vieram outras coisas, foram três anos na casa dela.

No mercado do sexo trans, a 'cafetinagem' é constante, e de modo geral, elas podem ser cruéis. Geralmente, elas são trans mais velhas, que buscam meninas novas, rejeitadas pela família, e aí elas 'acolhem' e tem início a um ciclo de extorsão, agressões físicas e emocionais e manipulação. Hoje está mais camuflado isso.

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A prostituição é viciante, como uma droga; e não é um dinheiro fácil, pelo contrário, mas é a forma mais rápida para nós, mulheres trans, porque oportunidade de emprego é raro, e furar essa bolha é difícil. Por isso a maioria vive da prostituição, é um dinheiro que vem rápido e vai embora rápido.

Muitas vidas em uma só

Paula antes da tragédia
Paula antes da tragédia Imagem: Arquivo pessoal
Paula antes da tragédia
Paula antes da tragédia Imagem: Arquivo pessoal

Na rua, estamos expostas a todas as maldades. Uma vez um cliente me levou para um local afastado, estava armado, me roubou tudo e me deixou quase nua. Vi a morte ali.

Isso sem contar, clientes embriagados ou sob efeito de drogas, além de jovens, passando de carro e jogando ovos e copos com urina em nós. Nunca gostei de drogas, mas fui compulsiva por compras, ia para o shopping e gastava com isso. Era a minha válvula de escape.

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Já morei em São Paulo, Belo Horizonte e em 2009 fui para a Itália. A principal diferença lá é a segurança e os clientes. Eles nos levam para restaurante, cinema, alguns se apaixonam, enquanto aqui é no sigilo. Mas lá o ritmo é outro, porque temos que fazer praça [mover-se sempre para uma cidade diferente para dessa forma ser a novidade no local]. A experiência foi boa, mas só fiquei um ano.

Uma bomba-relógio no corpo

Sofremos muitas pressões quando entramos nesse meio. Se você não tem silicone industrial no corpo, você não é vista como travesti para muitas delas.

Em 2020, tive rejeição do silicone nas nádegas, isso após uns 15 anos que havia colocado 6 litros. Ele necrosou, sofri muito, tenho duas cicatrizes horríveis, e tenho também o produto nas pernas, nas coxas, e no quadril.

Muitas morrem no momento da aplicação. Isso é uma bomba-relógio no corpo, cedo ou tarde dará problemas. Se pudesse voltar ao tempo, jamais teria colocado isso. Nos seios tive rejeição também, mas neste caso foi a prótese que encapsulou em um dos lados. Geralmente fazemos isso em cirurgiões mais baratos, que não tem muita responsabilidade, mas são conhecidos no nosso círculo transgênero.

O 'doce' que mudou a vida

Havia feito uma dívida com uma cafetina de Goiânia, ela havia me financiado um carro e após pagar a metade, ela passaria para o meu nome. Após ter pago o combinado, vi que ela não iria repassar para mim, e iria começar mais um processo de extorsão.

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Então, deixei o carro pra ela e fui embora, não saí devendo nada, mas aí começaram as ameaças. Ela mandou alguns marginais me darem um tiro, estava na rua trabalhando quando aconteceu isso. Todos achavam que era um assalto, mas não foi.

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Imagem: Arquivo pessoal

Estava no auge da beleza, independente e, de repente, você leva um tiro na medula, e se torna dependente das pessoas para te dar comida, um copo d'água, banho, foi muito difícil.

Levei dois anos para me aceitar na cadeira de rodas, não me olhava no espelho, não deixava ninguém me ver, é um luto.

Felizmente, tenho uma rede de apoio familiar fundamental, além de amigos também. Estou caminhando para 11 anos como PcD, e hoje a minha vida é completamente diferente.

Liberei o perdão

Meses depois, a cafetina foi presa [por outro motivo], logo depois ela se descobriu vivendo com HIV que, na verdade, já havia evoluído para Aids. Após isso, veio um câncer severo e, embora ela tivesse dinheiro para se tratar, não havia mais jeito.

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Quando estava doente, ela me procurou diversas vezes para pedir perdão, mas recusei, até que um dia uma trans que morava com ela me ligou e disse 'ela não vai passar dessa semana', então conversei com ela, e a perdoei. Em seguida, ela faleceu. A partir do momento que liberei o perdão, as coisas melhoraram. Felizmente consegui fazer isso.

Paula no hospital, logo após levar um tiro
Paula no hospital, logo após levar um tiro Imagem: Arquivo pessoal

Faço reabilitação, e é para sempre, se não fizer fisioterapia os músculos atrofiam. Recuperei sutilmente o movimento dos braços, a respiração melhorou muito, mas não consigo ainda segurar uma colher, um copo. Tenho uma qualidade de vida boa dentro da minha condição. E se não tivesse acontecido isso? Acho que estaria no mercado do sexo ainda ou já estaria morta, porque é uma vida intensa em todos os sentidos.

Hoje tenho paz, antes não tinha, era viciada em sexo e dinheiro. Antes vivia com medo, ainda mais quando você trabalha na rua, você está vulnerável. Me considero uma sobrevivente, e quero chegar aos 60, 70 anos, estou me cuidando para isso.

Mesmo sendo PcD, me considero mais feliz hoje, só peço saúde, porque assim podemos fazer planos, e muita coisa boa ainda virá na minha vida."

Os riscos da aplicação de silicone industrial

A dermatologista Elisete Crocco, da Santa Casa de São Paulo, explica que o silicone industrial não tem indicação para aplicação em seres humanos, e por isso não há nenhuma segurança na sua interação com o tecido humano.

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Segundo a médica, o uso pode resultar em necroses ou "destruição" das áreas injetadas e inflamações agudas e crônicas.

Assim como relatou Maia, é apenas uma questão de tempo para as consequências surgirem, "complicações irão aparecer, seja no início, pelos quadros de infecção, ou pela migração do silicone para outras áreas, ou ainda por inflamações tardias de difícil controle", esclarece Crocco.

A retirada da substância é um processo complexo, conforme a médica explica: "A cirurgia para remoção é apenas das áreas maiores, mas nunca de todo o produto injetado. E o conteúdo que permanece, mesmo que em pequena quantidade, pode causar as mesmas reações mencionadas".

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