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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Por que a cannabis é ótima para problemas como dores, Parkinson e insônia

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

08/03/2022 04h00

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Cannabis é o termo científico. Maconha, você sabe, é o que está na boca do povo — às vezes literalmente, na forma de um cigarro. E, até por isso, quem estuda os efeitos terapêuticos da planta prefere a primeira opção, querendo assim dissociar o que é usado como remédio há mais de quatro milênios das formas destinadas ao consumo recreativo. É que existe uma bela diferença e ela não fica apenas no nome.

Deixando de lado qualquer julgamento, fumar maconha é uma coisa e aplicar uma pomada, pingar gotinhas de óleo ou engolir cápsulas de Cannabis é outra. Posso decepcionar alguns ou aliviar o seu receio, mas, para começo de conversa, os remédios não dão qualquer barato.

Quem faz piada diante de quem segue um tratamento sério à base da Cannabis com a devida prescrição médica, de maneira totalmente legal e regulamentada no Brasil, embarca em outro tipo de viagem — a do preconceito. E ela pode não ter volta, se levar a pessoa a temer e nem cogitar medicamentos capazes de ajudar em casos graves de epilepsia, induzir o sono quando ele parece nunca chegar, aliviar dores crônicas, regular o apetite, sumir com os enjoos de quem está batalhando contra um câncer e muito mais. Não faz sentido criar confusão.

É preciso acertar na receita

A Cannabis tem mais de 600 compostos, entre eles cerca de 200 tipos de moléculas da família dos terpenos, que lhe dão o odor característico. Mas, principalmente, a planta carrega em torno de 120 canabinoides e esse grupo de substâncias em especial é que se torna alvo de pesquisas na Medicina.

"Duas delas se destacam, até porque são as mais estudadas: o THC, sigla de tetrahidrocanabinol, e o CBD, o canabidiol. E têm efeitos bastante distintos", explica o cirurgião geral Rafael Pessoa, que é diretor médico da Cannect, empresa criada para facilitar o acesso aos medicamentos à base da planta, realizando um trabalho que vai da disseminação de achados científicos entre os profissionais de saúde à orientação sobre a prescrição da fórmula ideal conforme o caso, passando pelo processo de aprovação com a Anvisa à entrega do remédio ao paciente.

Quando Pessoa diz que os canabinoides agem de forma muito distinta entre si, ele não exagera. "O THC, por exemplo, aumenta o apetite e vem sendo usado há bastante tempo por indivíduos que não conseguem comer em função de doenças como a Aids ou de tratamentos como a quimioterapia contra o câncer." Assim, a medicação ajuda o corpo a recuperar os nutrientes e a força.

Já o CBD, muito pelo contrário, é capaz de cortar a fome. Tanto que, hoje, existem pesquisas para investigar se esse componente da Cannabis não ajudaria no combate à obesidade.

O THC, também, é o princípio psicoativo. Ou seja, ele que é capaz de provocar efeitos alucinógenos, enquanto o CDB não faz nada nesse sentido. E, diga-se, é o CDB que impera nas formulações para baixar a ansiedade e induzir o sono, como provavelmente a usada pelo surfista Pedro Scooby que, muito antes de entrar em qualquer reality show, já tinha declarado que só fazia uso de Cannabis medicinal e isso por causa de sua dificuldade para dormir.

Ao povo que assiste ao BBB 22, não é por isso que, de vez em quando, com ares de quem se desligou das câmeras, o "brother" fica minutos eternos admirando as paredes da casa. O remédio que ele disse usar — se por acaso ainda estiver usando — não causaria nada parecido. O que ele pode é proporcionar uma noite de descanso, desde que — atenção! — tenha sido muito bem indicado.

Nem sempre é simples para o médico acertar na prescrição. Há fórmulas que têm o THC e um amplo espectro de canabinoides, todos ou quase todos os da erva original. Existem remédios que têm só o CDB junto com o THC, mas em proporções bem variadas. A combinação dos dois é útil até porque, juntas, suas moléculas têm sinergia e, então, bastará um nadica do THC — em uma quantidade muito inferior ao do cigarro de maconha — para alcançar a ação terapêutica desejada sem o risco de efeito coleteral, como ficar chapado. E, ainda, existem medicações que contêm apenas uma dessas substâncias, puras e isoladas.

Mas, antes mesmo de acertar na formulação, é preciso checar se há de fato uma indicação — como com qualquer medicamento. Afinal, apesar da fama crescente, a Cannabis não é solução para todos os nossos males. Longe disso.

"Existem estudos sugerindo que ela pode funcionar muito bem para casos de insônia inicial, quando a pessoa demora até adormecer ao se deitar. No entanto, não há evidência forte de que ajude em outros distúrbios do sono, como a apneia", exemplifica a neurologista Camila Pupe, que é membro do comitê médico da Cannect e professora da UFF (Universidade Federal Fluminense).

A "Cannabis interior"

Se a planta age em diversas condições de saúde, isso acontece em parte porque temos espalhados pelo corpo receptores que são feito fechaduras nas quais os componentes da Cannabis se encaixam com perfeição. E, a partir dessa ligação, eles interagem com uma série de moléculas, como as de outros neurotransmissores.

Descobertos ainda no final dos 1960, esses receptores formam o sistema endocanabinoide, ou seja, o sistema da nossa "Cannabis interior". Sim, pense que o organismo não dá ponto sem nó. Ou melhor, não cria receptores à toa e, sim, para moléculas que têm algum papel no seu funcionamento. Sinal de que existem desde sempre em nós — aliás, em todos os mamíferos — substâncias muito parecidas com as da maconha, opa, as da Cannabis.

"Os receptores CB1 se concentram no sistema nervoso central e na superfície dos nervos periféricos", descreve a professora Camila. "Já os receptores CB2 são mais encontrados em outros órgãos e em determinadas células do sistema imunológico, o que explica por que medicamentos à base de Cannabis têm uma ótima ação antiinflamatória."

Aliás, há um aspecto vantajoso na geografia do sistema endocanabinoide: "Não encontramos seus receptores no tronco cerebral", diz a neurologista, referindo-se à porção que conecta do cérebro à medula espinhal, transmitindo os comandos para que os órgãos vitais trabalhem.

"O problema de certos remédios que usamos para tratar a dor, como os opioides, ou quadros de ansiedade, como os benzodiazepínicos, é que eles também agem bem ali", informa a médica. "Resultado: há sempre o risco de, por excesso na dosagem, eles provocarem a diminuição do ritmo respiratório até a sua completa parada."

Porém, sem receptores no tronco cerebral para os seus componentes, essa ameaça não existe com a Cannabis medicinal, que Camila Pupe prescreve para quem sofre de neuropatias. "E sempre me surpreendo com os bons resultados", afirma.

Segundo a neurologista, os canabinoides regulam o chamado portão da dor no sistema nervoso. "Por ele, passam sinais que sobem de algum canto do corpo, ativados por receptores de dor na pele, e descem sinais enviados pelo cérebro, que poderiam proporcionar algum alívio", resume.

Mas nada disso acontece direito nas neuropatias periféricas. Então, as mensagens dolorosas podem ser disparadas sem motivo e com intensidade além da conta. E os sinais que descem do sistema nervoso central, por sua vez, costumam deixar a desejar. Os canabinoides, no entanto, tendem a equilibrar esse cruzamento de sinais que sobem e que descem, calando o sofrimento. "E mais: eles agem na depressão, na ansiedade e na insônia, problemas que, com frequência, são associados aos quadros de dor", nota a médica.

No Parkinson e na epilepsia

Quando a gente pensa em Parkinson, logo se lembra dos sintomas motores, isto é, da lentificação dos movimentos, da facilidade para quedas por causa da instabilidade postural, dos tremores e da rigidez. Vamos ser claros: os canabinoides pouco fazem por eles.

"Mas a doença apresenta outros sintomas com um tremendo impacto na qualidade de vida, como dores pelo corpo e psicoses", lembra a professora Camila. É nestes que a Cannabis medicinal age. E, aliás, ninguém tem muita dúvida sobre sua eficácia em casos assim, porque o tratamento já foi bastante estudado para o Parkinson.

O mesmo grau de evidência existe com a epilepsia, principalmente se outros remédios deixam de surtir efeito. "No cérebro de quem tem epilepsia, existe um excesso de excitação em alguns circuitos neuronais, causando uma espécie de sobrecarga", descreve a médica. "Então, é como se os canabinoides desligassem o sistema sobrecarregado", observa.

Como muitos pacientes são crianças, os médicos prescrevem apenas o CBD. "Não conhecemos ainda a segurança de dar o THC mesmo em doses baixíssimas, já que é um agente psicoativo, para um sistema nervoso que ainda está em formação", justifica Camila Pupe.

E os efeitos colaterais?

Segundo os médicos, o CBD tem reações adversas raríssimas. Em doses relativamente altas, como aquela que é usada nas epilepsias refratárias, o mais comum é o paciente reclamar de diarreia, náusea e, às vezes, sonolência. "Mas esses sintomas somem depressa, havendo uma adaptação", assegura o doutor Rafael Pessoa.

É bem verdade que eles se tornam mais intensos quando o THC está junto. "Ainda assim, são mais fracos do que os da maioria das drogas usadas contra dores crônicas", compara a professora Camila. E, no entanto, ninguém se sente constrangido ao contar que está tomando uma delas. Nem ouvirá piada sem graça por comprá-las nas farmácias.