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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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Máscara: ela simboliza nossa liberdade em uma pandemia que não acabou

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

22/03/2022 04h00

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Queira você ou não queira permanecer de máscara por aí, acho que em um ponto vai concordar comigo: o acessório de tecido virou bode expiatório, muitas vezes mais xingado do que o próprio coronavírus, ao se tornar o símbolo de uma pandemia que tínhamos de encarar.

Visível na face, virou um lembrete desagradável bem diante do nariz. Ganhou em troca o nosso ranço.

Livros de História, que nos ensinam sobre a Revolta da Vacina — quando, em 1904, o povo brasileiro saiu às ruas para protestar contra a obrigatoriedade de se vacinar contra a varíola —, ainda vão apelidar os tempos de agora como os da "revolta da máscara".

Desde o início da covid-19, alguns esbravejam contra a peça "tirana" que, ficando na cara, significaria se curvar a um mundo de restrições. Mundo, aliás, que os revoltados provam estar de ponta-cabeça.

Digo isso porque, afinal, há uma tremenda inversão: ao contrário de nos restringir, ao lado da vacinação, o uso de máscara é o que sempre nos deu liberdade para tocar a vida sem ficar tão sob a ameaça do Sars-CoV-2, diminuindo o risco de novas ondas capazes de atravancar da economia aos encontros felizes.

Aliás, é o que continua nos dando essa liberdade. Porque, apesar de a obrigatoriedade do uso ter caído em alguns municípios, inclusive em locais fechados, a verdade que precisa ficar bem descoberta é esta: a pandemia não acabou.

Máscara na gaveta e coronavírus nas ruas

"Como dizer que a pandemia acabou se a gente continua vendo cerca de 300 brasileiros morrerem por causa do Sars-CoV-2 todos os dias?", espanta-se o imunologista Luiz Vicente Rizzo, diretor do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, em São Paulo. "O estoque de mortes dessa doença parece não terminar nunca."

Na comparação de sempre, é como se diariamente despencassem dois aviões comerciais lotados de passageiros. Bastaria um único desastre aéreo para o país se comover — e com razão. Mas a mesma razão já parece estar cansada de tristeza e, na covid-19, sai de campo substituída pela ilusão como um jeito de continuar o jogo.

"O cérebro humano foi criado para se adaptar e, nesse sentido, para suportar a realidade passa a entender como normal esse tanto de mortes", opina Rizzo. "A única explicação para alguém proclamar o fim da pandemia — ou o tal começo do fim, que seja — vem da neuropsicologia e não da infectologia, nem da imunologia."

Espaços abertos, espaços fechados

Dá para deixar a máscara de lado em qualquer canto? "Eu ainda a uso", responde o patologista Paulo Saldiva, professor da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo). "Talvez porque o patologista é o médico do que não deu certo", diz ele.

O professor lidera, no Hospital das Clínicas da faculdade, os estudos com autópsias de indivíduos que tiveram a covid-19, buscando entender os seus estragos. Atualmente, a maior parte dos casos que investiga é de gente que faleceu em casa, do nada — com o coração fulminado, por exemplo.

"Perguntamos se a pessoa teve a doença e, mesmo com a resposta negativa, fazemos o teste", conta. "Por essas semanas, vimos que uma boa parte estava com o coronavírus e, comparando com quem não teve a infecção, queremos entender se aquele indivíduo morreu com a covid-19 por uma coincidência ou por causa da covid-19, que teria desencadeado o problema fatal."

Procurei o professor Saldiva porque ele é também um dos maiores pesquisadores dos efeitos de poluição e de tudo o que de ruim a gente traga com o ar — eventuais aerossóis com o Sars-CoV-2 incluídos. Para ele, mesmo no auge da pandemia, já seria bem razoável andar sem máscara em espaços abertos, mantendo a distância dos outros. "Portanto, desde que não houvesse aglomeração", frisa.

O médico dá o seu exemplo: vai pedalando para o trabalho com a máscara no queixo. Mas trata de subi-la para o lugar certo quando duas ou três bicicletas param ao seu lado em um cruzamento ou se algum ambulante se aproxima. Faz isso ainda hoje, ignorando a recente desobrigatoriedade do gesto.

"No contexto da pandemia, considerar como espaço aberto os estádios de futebol com torcedores gritando a cada lance — e expelindo mais vírus justamente pelos berros — é arriscado demais", critica. O mesmo vale para festivais, como o Lollapallooza, que acontecerá neste final de semana em São Paulo. Atenção: a proximidade das pessoas entre si sempre manda para o brejo as vantagens da ventilação.

Sobre a liberação da máscara em espaços fechados, como academias de ginástica, Paulo Saldiva nem titubeia: "É uma temeridade".

Não obrigar é diferente de não recomendar

Este é o ponto de vista do infectologista Alberto Chebabo, atual presidente da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia): "Temos uma doença que mudou de perfil desde 2020. Nos lugares onde a vacinação está avançada, a percepção de risco diminuiu, até porque neles você raramente encontra um jovem imunizado e sem comorbidade desenvolvendo quadro grave. Aí, tornar a máscara obrigatória deixa de ser adequado".

Segundo o infectologista, isso significaria passar da fase de obrigar o uso para a fase de recomendar cuidados individuais — o popular caso a caso.

"Há pessoas que não podem abrir mão da máscara mesmo hoje, como os imunossuprimidos e os idosos acima de 75 anos", admite. "Assim como existem circunstâncias que, independentemente da idade ou da condição de saúde, continuarão pedindo máscara, como andar no transporte público, dividindo o ar com as pessoas na condução."

Lembro de lá atrás, quando eclodiu a Aids e todos reclamavam que a camisinha tornaria o sexo sem graça. A gente se adaptou. Hoje, quem se cuida e respeita a pessoa ao seu lado carrega o preservativo na bolsa ou no bolso para uma eventual necessidade. Pode ser o futuro da máscara.

Até quando?

"Pelas projeções de várias instituições respeitadas, teremos novas ondas de covid-19 — feito surtos, em países ou regiões — até pelo menos o final de 2024 e o início de 2025", informa o infectologista Carlos Starling, consultor da SBI e membro do Comitê Gestor da Pandemia da prefeitura de Belo Horizonte, Minas Gerais. "Essas flutuações devem acontecer enquanto o mundo inteiro não estiver vacinado."

O problema, ele reconhece, é que vivemos uma "exaustão pandêmica", o que provoca certa cegueira para o que acontece neste momento em outros países da Europa com taxas de vacinação semelhantes às nossas. Como a Alemanha, que, depois de certa flexibilização das medidas não farmacológicas — sendo o uso de máscara um dos principais pilares —, sente mais uma vez as garras do Sars-CoV-2 na pele. Ou melhor, nos hospitais.

Desde o início da pandemia, a onda que bate na Europa chega aqui no máximo um ou dois meses depois. Mas não temos o bom hábito de aprender com o exemplo. Repetir a liberação do uso de máscaras equivale a ficar sentado só esperando a nossa vez.

Na semana passada, o médico João Viola, à frente do Comitê Científico da SBI (Sociedade Brasileira de Imunologia), participou de uma reunião na Fiocruz para discutir essa questão. "Constatamos que pegamos um atalho, fizemos uma transição abrupta e sentiremos daqui a pouco qual o efeito disso", conta. Ele se preocupa especialmente com o seguinte: "Muitas cidades brasileiras ainda têm menos de metade da população vacinada e as pessoas transitam pelo país".

Para o pediatra Renato Kfouri, membro da diretoria da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações), é difícil prever o que acontecerá. "Mas é provável que, durante um tempo, a gente viva uma lua de mel", cogita.

Isso porque a imunidade híbrida — quando a pessoa tem os anticorpos da vacina e os anticorpos de uma infecção natural — parece ser ligeiramente mais duradoura do que aquela de quem só se vacinou ou só adoeceu pra valer. E, infelizmente, a impressão é que, mesmo vacinado, bastou estar vivo para pegar ômicron. "Ela fez mais casos do que o pior momento da variante gama", lembra Kfouri. Desse modo, a tal lua de mel seria um oferecimento da imunidade híbrida.

Está em nossas mãos

Para Paulo Saldiva, da USP, "a liberação precoce das máscaras em espaços fechados vem para atender ao desejo de pessoas cansadas em um cenário eleitoral que usa um fetiche de ciência", referindo-se aos dados um tanto esquálidos que foram usados para embasar a decisão.

Segundo o professor, pessoas muito expostas, como usuários de transporte público, caixas de supermercados e padarias, garçons e balconistas de lojas de não devem dispensar o acessório, até pelo risco de levarem o vírus à família.

Mas talvez você tenha reparado que esses trabalhadores, ao menos durante o expediente, costumam estar de máscara — ou é o que se espera deles. Isso porque a legislação trabalhista obriga quem tem carteira assinada a usá-la. "Sendo uma portaria federal, ela supera qualquer decisão de governadores de estado ou prefeitos", explica Carlos Starling.

Governadores e prefeitos que, no início da pandemia, ganharam autonomia na sua gestão para que pudessem — eis o sarcasmo! —, entre outras medidas, exigir o uso de máscaras, indo contra os negacionistas no Planalto. Mas agora estão de olho nele.

O fato é que não deveríamos precisar de ordem ou proibições para nos cuidarmos direito. Usar máscara —tão chata e tão necessária — está em nossas mãos. Digam o que disserem.