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Blog da Lúcia Helena

REPORTAGEM

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O que você aprende sobre saúde vendo os avanços no tratamento da hemofilia

Pixabay
Imagem: Pixabay

Colunista de VivaBem

25/04/2023 04h00

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Na segunda-feira passada, 17 de abril, foi o Dia Mundial da Hemofilia. Na véspera, eu aterrissava no país depois de ter feito uma imersão no Hemostasis and Thrombosis Center da UC Davis (Universidade da Califórnia), um dos primeiros centros de referência nessa doença nos Estados Unidos, criado ainda na década de 1960.

Quem tem hemofilia, ao se machucar, sangra por mais tempo do que eu ou do que você que não tem esse problema crônico, de caráter genético e incurável — mas controlável em boa parte dos casos, como lembra o hematologista pediátrico Jonathan Ducore, que está à frente do centro americano.

Aliás, se fosse só questão de furo, corte ou arranhão na pele, até que estaria fácil. Na maioria das vezes, porém, ocorrem sangramentos internos. Alguns potencialmente fatais, como aqueles após uma batida acidental na cabeça, e outros bem comuns e chatos, nos músculos e nas articulações, como joelhos, ombros e cotovelos.

Estes não só doem à beça, mas o sangue derramado ali repetidas vezes vai degenerando as juntas, Com o tempo, pode se chegar ao ponto de a pessoa não conseguir se movimentar, segundo o fisioterapeuta Curtis W. Yee, também da UC Davis.

"A hemofilia é capaz de ser debilitante", confirma a hematologista Margareth Ozelo, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Fiz questão de ouvi-la ao voltar para entender o cenário brasileiro.

Considerada uma das maiores pesquisadoras nessa doença, ela é tão apaixonada pela possibilidade de tratá-la que chegou a adotar três cachorros com hemofilia enquanto fazia pós-doutorado em terapia gênica no Canadá. Sim, qualquer mamífero é capaz de ser hemofílico.

Por que sangra?

Quando um vaso do corpo se rasga, o sangue não deveria vazar sem parar. A própria lesão em sua parede dispara uma mensagem química para as plaquetas, fragmentos de células na circulação que, uma vez avisados, acionam uma enzima presente no plasma sanguíneo.

Esta, por sua vez, ativa outra que então bota uma terceira para funcionar e assim por diante, feito uma corrente de mais de dúzia dessas enzimas, que são os famosos fatores de coagulação.

No final, esse trabalho coordenado provoca o surgimento de uma rede que literalmente prende os glóbulos sanguíneos querendo escapar — e quando estão assim, enredados, o que você vê é a popular casquinha de ferida.

"Mas não é o que acontece com quem tem hemofilia", diz a professora Margareth. Nessa gente a tal corrente é quebrada. Ou porque falta o fator de coagulação XIII (oito) no plasma, caso dos indivíduos com hemofilia A, ou porque não tem o fator IX (nove) — e aí estamos falando de hemofilia B.

A primeira aparece em 1 em cada 5 mil homens e representa a maioria de oito em cada dez pacientes. Já a hemofilia B é seis vezes menos frequente, surgindo em 1 em cada 30 mil homens. Juntas, acometem cerca de 13 mil brasileiros.

Apesar de o número ser tímido, ele indica que o Brasil possui a quarta maior população de hemofílicos do planeta. Tudo bem, é de fato uma doença rara. Mas seu conhecimento traz lições.

Nunca menospreze sintomas

Essa dica vale para tudo. Logo, a hemofilia não é exceção — mesmo que você não tenha casos na família e mesmo que seja mulher.

Deveria chamar a atenção o bebê que sangra ao levar qualquer tombo. Inchaços e dor nas articulações e nos músculos são exemplos do que também levantaria suspeita — até mesmo em adolescentes e adultos.

Geralmente a doença é, sim, hereditária e transmitida pelo cromossomo X da mãe, que vem com a receita dos fatores de coagulação VIII e IX. "Como as meninas têm dois 'X', um deles herdado do pai, é como se o segundo pudesse trazer a informação correta e compensar o primeiro", esclarece a professora. Mas, ainda assim, 2% ou 3% dos casos são em mulheres, apesar de acharem que essa é uma doença exclusiva dos homens. Engano.

Para os rapazes, que têm a dupla de cromossomo XY, não existe escapatória se a mãe carrega o gene da hemofilia no cronomossomo X. Sua porção Y não conseguirá superar esse destino.

O mais impressionante, porém, é que 30% dos pacientes — quase um terço! — não têm familiar com hemofilia. É como se os genes estivessem alterados só naquela pessoa. Portanto, no fundo, repare: a hemofilia pode acontecer com qualquer um.

"Um desafio é o diagnóstico", nota Margareth Ozelo. "Especialmente nos casos leves, quando a pessoa produz de 5% a 40% da quantidade normal do fator de coagulação." Ela não sangra com facilidade em situações do dia a dia e costuma só descobrir a doença ao sofrer um trauma mais forte ou ser submetida a uma cirurgia.

Nos quadros moderados, o indivíduo produz de 1% a 5% do fator de coagulação afetado pela doença. Já nos casos graves, a produção é inferior a 1%, provocando sangramentos a troco de nada.

Exercício é fundamental

O conhecimento mais recente sobre hemofilia reforça essa máxima da saúde. Ora, durante décadas, os hemofílicos evitaram qualquer esporte com medo de que uma reles falta na quadra se transformasse em emergência médica.

De acordo com Curtis Yee, o fisioterapeuta da UC Davis, é o contrário: a musculatura fortalecida pelo exercício ajudaria a proteger as articulações de sangramentos espontâneos. Por isso, a atividade física precisa fazer parte do tratamento.

É claro que os especialistas recomendam modalidades com menos impacto, como a natação e o ciclismo. Mas, para Curtis, se um adolescente deseja jogar futebol, cabe à equipe de saúde orientá-lo para controlar ainda mais a sua condição e possibilitar a realização desse sonho.

Prevenir é melhor do que esperar para tratar

O dia a dia dos hemofílicos é a prova disso. No passado, o esquema de tratamento era sob demanda. Ou seja, quando sangrava, a pessoa corria para o hemocentro para tomar a dose do fator de coagulação deficiente e estancar o problema. Só que o estrago já estava feito. A medida servia apenas para impedir que se agravasse.

Desde 2012, porém, o tratamento da hemofilia é profilático: duas ou três vezes por semana, a pessoa toma a enzima que está em falta na veia e isso evita que sangre à toa.

Vale eu lembrar que até a década de 1990 o que se infundia era o plasma de doadores. Isso rendeu um capítulo triste com o surgimento da Aids. Muitos hemofílicos adquiriram o HIV em transfusões. Hoje não existiria esse risco.

"Os produtos derivados de plasma passam por um processo de inativação viral e são seguros", garante a professora Margareth . "E, além deles, existem os fatores recombinantes, criados a partir de cultura de células em laboratório", explica.

A situação no Brasil

Aqui, todo o tratamento da hemofilia é oferecido pelo SUS. O Programa Nacional de Coagulopatias Hereditárias do Ministério da Saúde distribui as medicações para infusão pelos centros de referência.

Apesar de os americanos contarem com uma gama maior de medicamentos, o Brasil proporciona equidade de acesso — nos Estados Unidos, normalmente trata quem tem seguro.

Em compensação, os brasileiros ainda não contam com alguns dos tratamentos mais avançados, em especial com o fator de coagulação VIII recombinante de longa duração. Ele até já foi liberado pela Anvisa e aprovado para incorporação no SUS. Mas, na prática, ainda não chegou à veia do cidadão.

Para facilitar a adesão

Há várias estratégias para prolongar a ação de um fator recombinante desses. Uma delas foi criar uma espécie de armadura química em torno da molécula. Para o paciente, isso significa apenas uma ou, no máximo, duas infusões semanais. Leia: maior qualidade de vida. O volume de medicação também fica reduzido, favorecendo o transporte para casa.

De uns quinze anos para cá, na verdade, surgiram várias novidades, "Uma delas são os anticorpos monoclonais que, apesar de diferentes, se encaixam no lugar do fator de coagulação naquela corrente que interrompe a hemorragia", aponta a professora Margareth.

A hematologista também ressalta a terapia gênica. "No nosso grupo, temos 38 hemofílicos submetidos a ela ", conta. Neles, um vírus incapaz de causar qualquer doença foi usado para levar para dentro de suas células a sequência de genes que corrigiria o problema. "Com isso, a maioria dos participantes começou a produzir o fator de coagulação e continua fazendo isso passados seis anos", afirma a médica. O problema é que o resultado dessa terapia é imprevisível. Alguns indivíduos não produzem nadica.

Hemofílicos grisalhos

Como em outras doenças, a Medicina precisa se preparar para um mundo que envelhece — outra lição que a hemofilia sublinha. Agora encontramos pacientes com bem mais do que 70, 80 anos. Aí, o cuidado para evitar acidentes domésticos deve ser redobrado. E um desafio é o esquecimento de alguns deles em relação à infusão.

"Estamos aprendendo com essa situação nova", admite Margareth Ozelo. "Alguns tratamentos para arritmias em idosos aumentam o risco de sangramentos, por exemplo."

Esse é o tipo de perrengue que tem um lado bom: mostra que, com as novas tecnologias, quem tem hemofilia é capaz de levar a vida como qualquer pessoa, fazer esporte, ter filhos... E essa vida pode ser muito longa.

Nota de esclarecimento: esta colunista viajou para visitar a Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, a convite da Bayer.