Lúcia Helena

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Opinião

Esclerose múltipla: como um banco de dados poderá melhorar o tratamento

Uma mesma doença sempre pode ter algo de diferente de uma pessoa para outra, é fato. Na esclerose múltipla, porém, isso toma outra proporção.

Afinal, podem se manifestar perto de cem sintomas, a depender do ponto exato do cérebro em que surge uma inflamação, corroendo o revestimento esbranquiçado dos neurônios, a famosa mielina. E, infelizmente, isso nunca tarda: em geral, a esclerose múltipla dá as caras na faixa entre os 20 e os 40 anos de idade. Sem contar um caso aqui e outro ali que aparecem ainda mais cedo.

Ninguém terá toda a coleção de uma centena de sintomas, é claro. Nem mesmo dois ou três deles juntos, logo de uma vez. Para cada indivíduo, a doença representada pelo laço laranja poderá começar de um jeito. E seguir por um caminho totalmente diverso, o que dificulta as coisas.

Para alguns, o ponto de partida será uma visão que amanheceu embaçada, assim do nada. Para outros, o início de tudo será uma dormência ou um formigamento no braço, de uma hora para outra. Para outros, ainda, será a sensação igualmente repentina de fraqueza em uma das pernas, como se a esquerda precisasse fazer muito mais força para subir uma escada do que a direita, ou vice-versa.

"Estes são alguns dos sintomas iniciais mais comuns", lista o neurologista Alfredo Damasceno, da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), no interior paulista. Atual presidente do BCTRIMS (sigla em inglês para Comitê Brasileiro de Tratamento e Pesquisa em Esclerose Múltipla), ele se pergunta, fazendo coro com seus colegas: "Será que a maneira como essa doença começa interfere no prognóstico? Por exemplo, segundo dados lá de fora, a fraqueza nas pernas acompanhada de uma dificuldade para segurar a urina indicaria uma evolução que tende a ser mais rápida", diz ele.

Ou será que, mais do que o tipo de sintoma, o que interferiria com força seria se ele melhoraria sem maiores explicações após três ou quatro semanas, para voltar dali a algum tempo, ou se permaneceria sem dar trégua, piorando gradativamente?

Respostas assim ajudariam os médicos a acertar em cheio no tratamento e a pesquisar novas saídas, evitando o acúmulo de cicatrizes no cérebro e na medula, que surgem no lugar da capa de mielina arrasada pela inflamação. Esse acúmulo pode levar à perda de movimentos, inclusive os da fala.

"Podemos prescrever tratamentos mais leves para alguns pacientes", explica o doutor Damasceno, referindo-se a drogas como os corticoides para diminuir a inflamação. "No entanto, cada vez mais, surgem pistas de que, para boa parte das pessoas com esclerose múltipla, seria interessante apelar, de cara, para um tiro de canhão, ou seja, para terapias mais potentes, como anticorpos monoclonais que agem em alvos muito específicos. A questão é: quem é quem? Quando seria melhor fazer uma coisa e quando o ideal seria fazer outra?"

Existem informações de outros países que dão alguma orientação nesse sentido. Mas aí vem outra pergunta, esta urgente para os pacientes com esclerose múltipla brasileiros: "Será que essa doença teria características diversas no Brasil, em comparação com o que existe registrado na literatura internacional? Seria possível, inclusive, que pacientes do Norte e do Nordeste do país tivessem um perfil um pouco divergente do de jovens com esclerose múltipla do Sul do país?", especula o neurologista Jefferson Becker, professor da PUC (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e ex-presidente do BCTRIMS, do qual hoje é responsável pela expansão internacional.

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Em plena pandemia de covid-19, Becker foi um dos idealizadores da iniciativa que pretende aplacar todas essas questões: o BRANDO, um banco de dados que hoje reúne informações de mais de 3.500 pacientes de aproximadamente 30 centros de tratamento da esclerose múltipla brasileiros. E que, agora, ganha uma versão em espanhol, incluindo portadores de países latino-americanos.

A vantagem de ter o nosso próprio banco de dados

"Se a gente quer pensar em qual seria o melhor tratamento e fazer um prognóstico, é preciso comparar o que acontece com um grande número de casos", explica Alfredo Damasceno. "Por isso, a França começou a reunir dados de pacientes desde o final dos anos 1970, seguida de países como a Suécia e o Canadá. A questão é que, de região para região do mundo, há diferenças e nem tudo o que é visto em outros lugares deve ser igual aqui."

A bagagem genética tem o seu papel nas diferenças entre um país e outro — mas até que ponto? "Na Itália, há aproximadamente 100 casos de esclerose múltipla para cada 100 mil habitantes. Mas, nos descendentes de italianos que vivem na Serra Gaúcha, nós só encontramos cerca de 30 casos em cada 100 mil pessoas", conta Jefferson Becker, para pontuar que os genes não são tudo. Fatores ambientais e até de acesso à saúde têm o seu valor.

O Rio Grande do Sul, diga-se, é o estado brasileiro com maior número de pacientes com esclerose múltipla, refletindo uma concentração que se vê em países vizinhos com o clima mais frio. No ensolarado Norte do Brasil, são menos de 10 casos por 100 mil habitantes — "entre os indígenas que não têm miscigenação, podemos assumir que não há indivíduos com a doença.", afirma Becker. Já o Sudeste fica no meio do caminho, com 20 casos para cada 100 mil pessoas, sugerindo que o clima conta.

Ao registar como cada caso de esclerose múltipla entre nós começou e o que aconteceu com os pacientes conforme foram recebendo esse ou aquele tratamento, o BRANDO ajudará a compreender esse cenário, muito além da epidemiologia.

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Para fins de pesquisa

Outra vantagem inegável é a padronização. "Antes, cada centro de atendimento valorizava mais uma informação do que outra", nota o professor Becker. "Agora, podemos comparar se o que acontece na Finlândia é o mesmo que ocorre com o nosso paciente em Fortaleza, no Ceará, ou no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro", explica.

O banco também ajudará a identificar ligeiro determinados grupos de pacientes para a realização de pesquisas. O neurologista dá um exemplo: "Há casos de esclerose múltipla em pessoas vivendo com o HIV, o que soa parodoxal. Isso porque o vírus deveria causar uma imunossupressão, enquanto na esclerose múltipla parece ser o oposto: o sistema imunológico se mostra mais arisco, inflamando pontos no cérebro. Antes do BRANDO, eu só tinha dois ou três pacientes nessa situação. Agora, é possível localizar todos os indivíduos do país com esclerose múltipla e HIV, reunindo um bom número de casos para iniciar uma pesquisa e entender o que se passa".

Para combater o atraso no diagnóstico

Esta não é a finalidade principal do BRANDO, mas até nisso o banco de dados poderá ajudar, ao guardar a informação de quando teriam surgido os primeiros sintomas e quanto tempo se passou até a a doença ser flagrada.

No tipo de esclerose múltipla remitente recorrente, que representa 85% dos casos, o sintoma inicial piora nos primeiros dias, mas a partir daí vai melhorando até desaparecer. "O problema é que pode voltar depois de um mês, um ano, cinco anos... ", conta o doutor Alfredo Damasceno.

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A cada surto, mais danos no sistema nervoso central. E, chega um momento, os sintomas voltam e não desaparecem mais. É quando a doença entra na fase que os médicos chamam de secundariamente progressiva. "No passado, de metade a 80% dos pacientes com esclerose múltipla remitente recorrente desenvolviam essa forma", conta o professor Becker. Agora, com um maior número de diagnósticos mais precoces, há uma diminuição nessa transição para a doença progressiva.

O que os neurologistas querem ver, a partir do banco de dados, é se isso acontece em todo o Brasil ou se existem áreas do país onde o início do tratamento ainda demora demais, talvez porque o médico não associe os sintomas à esclerose múltipla para encaminhar o paciente. "Aí, caberá a nós, no BCTRIMS, criarmos mais ações educativas nesses lugares para evitar a perda de tempo", opina Damasceno.

Existem, também, 15% de casos que são os primariamente progressivos. "Estes só pioram, desde o comecinho e chamam mais a atenção tanto do clínico quanto do paciente", diz o médico.

Jefferson Becker comenta que seus colegas cardiologistas fizeram um bom serviço: "Hoje, quase todo mundo sabe que não é para tolerar um mal-estar no peito, que o certo seria correr a um pronto-atendimento em Cardiologia para descartar algum problema", compara. "Mas as pessoas ainda toleram, de boa, sintomas neurológicos".

O pior é que, na esclerose múltipla, essa tolerância dá prazo para que a queixa muitas vezes passe sozinha. Mas, ao ir embora, ela deixa no rastro uma cicatriz no sistema nervoso central que só será vista, em uma ressonância magnética, lá adiante. Por isso, vale o conselho: Algo estranho? Busque ajuda, pelo sim, pelo não.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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