Lúcia Helena

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Reportagem

Mpox: o que está diferente, o que se sabe e o que não se sabe sobre o vírus

No princípio, era uma zoonose, uma doença que bichos transmitiam para seres humanos. Quando ocorria algum caso, registrado na África, iam ver e a pessoa tinha comido carne de macaco ou de outro animal infectado pelo vírus responsável pela encrenca — vírus, aliás, que foi descrito pela primeira vez em um longínquo 1958, justamente em primatas.

Pelo parentesco com o causador da varíola, a infecção foi então apelidada de varíola dos macacos. Uma injustiça danada: depois se descobriu que havia muito mais ratos selvagens que primatas com o mpox. Sim, daqui em diante vamos chamar o causador da emergência de saúde global decretada ontem, 14 de agosto, pela OMS (Organização Mundial de Saúde) simplesmente de mpox.

Adianto: com mais de 14 mil casos, além de 524 mortes, existem bons motivos para a gente ficar esperta. Mas não há, pelo menos até onde a ciência enxerga no momento, razão para pânico.

O fato é que o mpox anda mesmo diferentão de uns tempos para cá, como aprendi conversando com um dos mais respeitados virologistas do país, o biólogo molecular José Eduardo Levi, que está à frente da área de desenvolvimento e pesquisa da Dasa.

Transmissão: o que está mudando

O mpox passou a nos dar mais trabalho em 2022, quando surgiram surtos em diversos países, com o vírus se disseminando principalmente entre homens que faziam sexo com homens. "Aí, já foi uma primeira surpresa. Não havia mais contato com um animal infectado, como sempre tinha acontecido até então. Era um ser humano passando o vírus para outro ser humano e ficava claro que a transmissão era sexual", recorda Levi.

Foram, então, mais de 99 mil casos confirmados ao redor do planeta — e lembre-se da subnotificação em regiões mais vulneráveis do globo. Em seguida, as ocorrências caíram e caíram...Bem verdade que nunca sumiram de vez. Sempre pipocou aqui e ali um ou outro episódio.

"No entanto, no ano passado já começamos a notar casos, digamos, atípicos, porque eram bem mais agressivos", diz Levi. Eles se concentravam em mulheres profissionais do sexo na República Democrática do Congo. "Continuava, ainda assim, sendo transmissão sexual, mas não mais só entre homens que faziam sexo com homens", observa o virologista.

Relação sexual é um rala-e-rola, não importa quem está na parceria. Pode abrir literalmente brechas na mucosa do pênis, da vagina e do ânus que, sem a proteção de preservativos, se tornam portas de entrada para um agente infeccioso.

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"A especulação que se faz é que a transmissão intensa entre as profissionais do sexo em 2023, com vários casos entre elas em curto espaço de tempo, tenha levado a uma capacidade de transmissão maior desse vírus de ser humano para ser humano. No mínimo, é plausível pensar que a transmissão pelo sexo se tornou mais fácil para o mpox", conta Levi. É aquela velha história que aprendemos no passado recente: quanto mais pessoas um vírus infecta, mais oportunidade ele tem de desenvolver alguma estratégia para se espalhar.

O que há de novo é o que os cientistas chamam de transmissão domiciliar. Não é que alguém transou com todo mundo da família sob o mesmo teto, pelo amor! "Provavelmente, agora o mpox é transmitido, também com maior facilidade do que antes, por proximidade física ou por objetos e tecidos que tiveram contato com a pessoa infectada ou, ainda, por transmissão respiratória, ou seja, por gotículas que que ela libera ao expirar", explica Levi. E o pior: nove em cada dez infectados são crianças e adolescentes menores de 15 anos de idade.

Essa é a peça do atual quebra-cabeça que ainda precisa ser encaixada direito: detalhes sobre a forma de transmissão.

Sim, o mpox está mudando. Ainda que em uma velocidade muito mais lenta que a de outro vírus que tocou o terror na humanidade recentemente, aquele de quem ninguém gosta de lembrar. Mas é preciso. Pandemias como a da covid-19 dão boas lições. E a mais preciosa é não marcar bobeira com a vigilância, prestando atenção, por exemplo, que o tipinho de mpox que fez a OMS decretar estado de emergência não é o mesmo de 2022.

Um tipo mais ameaçador

Muito antes de toda essa confusão, já existiam dois clados conhecidos de mpox, surgidos em regiões diferentes da África. No universo da virologia, um clado é um grupo de vírus que compartilham um mesmo ancestral, vamos dizer assim.

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O mpox que se espalhou majoritariamente em homens que faziam sexo com homens há cerca de dois anos era do chamado clado 2. Ele provoca uma doença chata pra dedéu: não bastasse a febre, os linfonodos inchados na garganta, o corpo moído, a dor de cabeça e a fraqueza, aparecem as pavorosas erupções cutâneas por todo o corpo, na maioria das vezes começando pela face, mas sem poupar nem sequer os genitais.

Essas lesões não só coçam com intensidade desesperadora como, dizem, ardem demais. E só tomam chá de sumiço depois de uns 21 dias, às vezes levam até um pouco mais que isso para secarem. "Daí as casquinhas caem e tudo cicatriza", descreve Levi. "Embora seja um quadro feio, a taxa de mortalidade é muito baixa."

No Brasil, de acordo com o Ministério da Saúde, de 2022 até a data atual foram 709 casos e 16 mortes. "E as pessoas que morreram tinham, na maioria das vezes, uma imunossupressão importante", acrescenta Levi, referindo-se, por exemplo, a indivíduos vivendo com HIV que não estavam tratando essa infecção.

O clado 1, porém, não é tão suave. Causa todos aqueles mesmos sintomas, só que a mortalidade é maior. E é ele que está aprontando agora. No começo dessa história, acreditava-se que o mpox da vez chegava a matar 10 em cada 100 pessoas que infectava. "Hoje temos a informação de que a taxa de mortalidade é mais baixa, fica em torno de 5%", diz Levi. Ou seja, menos mal. Mas ainda assim são cinco mortes para cada 100 infectados.

Qual o risco?

É improvável que o mpox do clado 1 fique apenas por onde está. "Mas, talvez, quando esse vírus alcançar a Europa, por exemplo, a mortalidade seja bem mais baixa", fica pensando Levi. E justifica: "Infelizmente, as crianças que vêm sendo vítimas do mpox na África já apresentavam outras doenças, como HIV e cólera".

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Como em qualquer infecção, o cenário tende a ser devastador em populações economicamente mais vulneráveis, que vivem em áreas sem saneamento básico, sem acesso à alimentação adequada e a outras condições que todo ser humano merece. Aliás, a falta de equidade no direito à saúde é a praga do mundo.

Será que isso significa que o mpox não se alastrará entre crianças, adolescentes ou adultos saudáveis por lá ou em outras bandas da Terra? "Qualquer coisa que eu falar no momento não terá muita base", responde Levi, com a honestidade dos bons cientistas. "Mas a expectativa, por enquanto, é de que não cause tanto transtorno."

Claro que o ideal é conter o mpox antes que ele se espalhe por todos os cantos e faça mais vítimas onde está presente. Neste instante, que se saiba, o vírus já viajou para pelo menos 13 países africanos.

Pode chegar uma nova vacina

A boa notícia é que já existem remédios para tratar essa infecção e, acima de tudo, uma vacina desenvolvida por um laboratório dinamarquês, que acaba de doar 15 mil doses para as áreas onde os surtos estão pegando fogo. Porém, a necessidade é de alguns milhões de indivíduos vacinados naqueles países com uma elevação espantosa de casos, se queremos colocar um freio na ameaça.

Segundo José Eduardo Levi, os cientistas da alemã BioNTech já estão em fase adiantada de pesquisa de uma vacina com RNA mensageiro contra o mpox e não se descarta que ela possa ser lançada ainda este ano. "A vantagem dessa tecnologia é que ela torna possível a produção rápida de uma quantidade enorme de doses", diz ele que, de seu lado, na Dasa, sem perder tempo começou a providenciar reagentes na semana passada para uma eventual necessidade de testagem no Brasil.

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Afinal, é preciso que todo mundo, em um estado de emergência como o que vivemos, tenha a capacidade de diagnosticar essa doença em maior escala. Vai que...

O teste de diagnóstico

O exame que confirma o mpox é um PCR, que acusa rastros do material genético do vírus. "Só é um pouco mais complicado porque não colhemos sangue do paciente. No caso, precisamos do material da ferida na pele", explica Levi.

Pelo sim, pelo não, ao lado de seus colegas, ele investiga por meio de modelos de computador se os reagentes que foram usados para flagrar o mpox do clado 2 em 2022 — quando chegou a fazer cerca de mil testes de casos suspeitos na Dasa — funcionariam para flagrar o vírus do clado 1. O Instituto Adolfo Lutz, vale destacar, fez um trabalho incrível com dezenas de milhares de testes no país naquele ano. E, agora, tem plenas condições para repetir o feito.

Além disso, é preciso garantir estoque de medicamentos e de vacinas, para proteger pelo menos quem conviver com pessoas infectadas. Isso são cenas de próximos capítulos de uma história que — é a esperança — não será tão catastrófica assim, se nos cuidarmos.

Reportagem

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