Picobirnavírus e outras apostas dos cientistas para novas pandemias
"Pico, picobirna... quem?!"— esquisito, eu sei. Ora, um vírus não é "quem". Aliás, nem se sabe direito em qual gaveta da Biologia colocá-lo. Mas foi o que soltei ao ouvir o americano Gavin A. Cloherty falar do picobirnavírus (este aí, que aparece na imagem). O cientista é um dos líderes na área de doenças infecciosas da Abbott, empresa global de saúde reconhecida por desenvolver testes de diagnóstico. Aconteceu há cerca de dois meses, quando Cloherty esteve no Brasil. Olhei para os lados, em busca de ajuda. Só encontrei olhares perdidos. Afinal, nunca tinha ouvido falar em picobirnavírus. E você?
Antecipo: esse vírus chamou (e chama) a atenção da ciência, mas parece que (ufa!) por enquanto tudo está sob controle. Conto o que descobri. O nosso amigo (ou inimigo) "pico" — que, do latim, quer dizer "pequeno" — é mesmo uma coisica de uns 35 milionésimos de milímetro, ou seja, ele é de duas a três vezes menor que um coronavírus.
Foi identificado pela primeira vez — adivinhe! — no Brasil em 1988, em amostras de fezes de ratos e de homens. Simples entender o que fazia ali: o picobirnavírus causava gastroenterites, com direito a soltar pra valer o intestino. Aliás, depois se viu que ele infecta diversas espécies ao redor do mundo, de animais de fazenda a bichos domésticos, passando por répteis, aves, primatas e nós. Mas, até então, era sempre acusado de desencadear belas dores de barriga.
O alarme soou quando o pequeníssimo vírus mudou de planos. Ou melhor, sofreu mutações no genoma e deu para causar síndrome respiratória aguda — quem viveu a covid-19 se arrepia só de ler isso. Na Colômbia, o picobirnavírus foi detectado em amostras de pacientes internados com os sintomas da encrenca nos pulmões entre 2016 e 2017.
"Isso nos deixou em alerta", relembra a cientista americana Mary Rodgers. "De lá para cá, encontramos casos no Camboja, na China e nos Estados Unidos. Os surtos se limitaram a um número reduzido de pessoas. No entanto, o fato de acontecerem em três continentes diferentes deixou clara a necessidade de termos um teste para flagrar o picobirnavírus depressa, caso ocorram surtos maiores um dia."
A ideia que não sai da cabeça da doutora é sempre esta: perceber o quanto antes qualquer ameaça de um agente infecioso, seja velho conhecido ou emergente, para não deixar uma doença se espalhar. O certo seria eu apresentá-la como bióloga e biomédica à frente da Abbott Pandemic Defense Coalition — coalizão cuja origem remonta o início da pandemia HIV-Aids nos anos 1980 e que hoje reúne infectologistas, virologistas e epidemiologistas de universidades e centros de pesquisas de 20 regiões do mundo, incluindo o Brasil. Mas eu diria que Mary Rodgers é uma caçadora de vírus.
Quando será a próxima pandemia?
"Esta é a pergunta que mais escuto", responde risonha, já prestes a encerrar o expediente para o jantar de Ação de Graças com a família — sim, acertei em cheio no calendário e marquei nossa conversa bem no 28 de novembro. Continuando... "Todo mundo gostaria de saber quando será. Inclusive eu!", brinca, na maior sinceridade.
De tanto ser indagada, veio o estalo: realizar uma pesquisa com mais de 100 experts de vários países para saber o que eles pensam sobre como será a nova pandemia e como devemos nos preparar para ela.
Há praticamente um consenso: três em cada quatro respondentes acreditam que enfrentaremos uma nova pandemia daqui a cinco ou, no máximo, 25 anos. Um detalhe sobre a pesquisa é que ninguém chutou uma opinião ou um mero "achismo". Os cientistas usaram seus estudos como base para as respostas.
Velho conhecido ou novidade?
A pergunta, precisamente, era a seguinte: "Quando você pensa em surtos em grande escala, capazes de representar uma ameaça maior, acha que a causa será um agente infecioso novo ou mudanças no padrão de doenças já conhecidas?". Os pesquisadores, então, se dividiram. Para pouquíssimo mais da metade deles, será uma doença que já conhecemos. O restante prevê algo completamente diferente para nos atormentar.
Mas em um ponto quase todos, ou 94%, concordam: o culpado pela próxima pandemia deverá ser um vírus. Faz sentido. Vírus são rápidos. Eles se replicam dentro das células dos hospedeiros num piscar e, nesse ritmo acelerado, se espalham por uma casa ou por uma firma, por uma escola ou por prédio. Depois, se ninguém colocar um breque, ganham a rua, o bairro, a cidade, o estado, o país, o mundo inteiro. Dão sempre um jeito de conquistar novos espaços — uns pelo ar, outros por secreções, outros por relações sexuais e ainda existem aqueles que passam de um organismo para outro por meio das picadas de insetos.
Qual será o modo de transmissão?
Os experts podiam apontar mais de uma resposta, por isso a soma dá mais de 100%. E vamos lá: praticamente todos, ou 99%, apostam em outro vírus respiratório ou transmitido por gotículas de saliva que deixamos pelo ar.
No entanto, 89% também estão bem receosos com a possibilidade de um vírus vindo de animais ou transmitido pela picada de insetos provocar uma nova pandemia. Aliás, 39% acham que é muito mais provável que isso aconteça — para eles, virá daí o perigo. Pesam demais as mudanças climáticas. E, diga-se, o voo dos mosquitos alcançando áreas inimagináveis.
"As mudanças no clima estão afetando os padrões das doenças infecciosas. Aquilo que achávamos que já sabíamos está se transformando continuamente", afirma a doutora Mary Rodgers. Na pesquisa, 61% dos especialistas contam que, em termos de pandemias, os vírus transmitidos por mosquitos são a maior ameaça na era do aquecimento global. Só 21% falam que a próxima pandemia deverá ser causada por um vírus das aves e 14% mencionam vírus vindos outras espécies animais.
Um vírus transmitido por mosquitos seria mais desafiador?
"Em todos os cantos, observamos o crescimento das doenças transmitidas por mosquitos", concorda a doutora Mary Rodgers. "Imagine que, aos pés de uma montanha, encontrávamos mosquitos transmissores de infecções. E vou lhe dizer: existem inúmeras espécies de mosquitos por aí! O aumento da temperatura, porém, faz com que consigam sobreviver em áreas mais altas, de modo que as pessoas morando no topo da tal montanha ficam expostas a agentes infecciosos com os quais seu organismo nunca teve contato. E é claro que estou falando em montanha, mas a mesma situação se repete em campos, florestas, nos mais diversos ecossistemas. Ela é real."
Sim, o calor espalha mosquitos pelo mundo. Não há máscara que sirva de escudo. Pergunto à doutora Mary Rodgers, então, se não seria mais difícil evitar uma pandemia transmitida por um tipinho como o Aedes aegypti, com o qual, infelizmente, os brasileiros têm intimidade. "Embora muitos dos participantes da pesquisa temam que seja, sim, mais desafiador, acho difícil comparar", retruca a pesquisadora "O fato é que você não pode evitar respirar, tampouco impedir a picada de um mosquito ao sair na rua ou se ele entrar pela janela."
As enchentes espalhariam vírus ameaçadores?
Sete em cada dez experts não descartam a hipótese do vírus causador de uma nova pandemia ser transmitido por alimentos ou pela água — e 12% chegam a estar bem preocupados com isso. Fico matutando: como será que os especialistas da coalizão organizam a vigilância após enchentes, como as que ocorreram recentemente na Espanha e as que vivenciamos, aqui, no Rio Grande do Sul?
"Não adianta tanto olhar para a água", explica a especialista."Se ela estiver contaminada, nunca saberemos se o agente infeccioso veio de um ser humano ou de um animal, vivo ou morto. A estratégia — aliás, em qualquer tipo de evento climático extremo — é redobrarmos a atenção nas hospitalizações, vendo se há algo diferente ou um número maior de casos. Para, então, focarmos na identificação de uma possível ameaça."
Além de inundações, mais de 90% dos especialistas indicaram furacões, secas e queimadas, com a consequente migração de pessoas e animais, como fatores capazes de alavancar ou até apressar uma nova pandemia, entornando de vez o caldo da humanidade.
Uma boa notícia depois disso tudo?
Também 90% acreditam que estamos muito mais preparados para enfrentar uma nova pandemia. "É um alento", suspira a doutora Mary Rodgers. "Mas devemos melhorar alguns aspectos, como os meus colegas também acusam na pesquisa."
Por exemplo, ainda faltam tecnologias para entender como as mudanças climáticas estão impactando até mesmo doenças antigas, acelerando sua propagação. Ninguém discorda da necessidade de os países investirem em vigilância para pegar no pulo agentes infeciosos com potencial para se espalhar. Aliás, treinar novas gerações de "caçadores de vírus" é algo que aparece nas respostas. E, não menos importante, promover na população a educação sobre doenças infecciosas, para evitar uma praga — sublinhada pelos pesquisadores — chamada desinformação. Esta pode botar picobirna e outros vírus no chinelo.
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