ISTs assintomáticas são questão central e negligenciada de saúde pública
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Em outubro de 2017 foi aprovado pelo senado brasileiro o projeto de lei que instituiu o Dezembro Vermelho como o mês de conscientização de prevenção contra o HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis (ISTs).
Como já passo boa parte do ano discutindo assuntos relacionados ao HIV/Aids, estou nesse dezembro de 2020 me dedicando a escrever sobre "as outras ISTs".
Na semana passada tracei um panorama da epidemia de sífilis no Brasil. Hoje, adoraria poder fazer o mesmo com duas outras ISTs bacterianas: a gonorreia e a clamídia. No entanto, o número de casos diagnosticados e tratados dessas infecções no Brasil é completamente desconhecido pelo Ministério da Saúde.
Segundo o último relatório de vigilância de ISTs da OMS (Organização Mundial da Saúde), gonorreia e clamídia são duas das mais frequentes ISTs em todo o mundo, contando com cerca de 1 milhão de novos casos todos os dias.
Na maioria dos casos, gonorreia e clamídia causam apenas sintomas leves de infecção uretral, proctológica ou ginecológica, todos tratáveis com antibiótico. Em situações mais raras, podem causar quadros graves, como infertilidade, gravidez ectópica ou artrite purulenta.
Pensando agora do ponto de vista epidemiológico, não são os casos graves que mais deveriam preocupar, mas aqueles em que a infecção por gonorreia ou clamídia acontece de forma totalmente assintomática.
Pense comigo, uma pessoa que está com ardência para urinar e com saída de secreção purulenta pela uretra em geral não vai pensar em sexo, mas em procurar atendimento médico. Retomando sua vida sexual apenas depois do tratamento antibiótico e da resolução dos seus sintomas.
Já aqueles que tiverem uma infecção assintomática por essas bactérias vão manter sua vida sexual normalmente, transmitindo-as para as suas parcerias.
Assim, já há vários anos a OMS recomenda como estratégia de controle dessas epidemias o rastreamento de assintomáticos entre as populações sob maior risco de ISTs, como as pessoas que têm múltiplas parcerias sexuais. Mas a adesão a essa recomendação é completamente desigual em diferentes partes do mundo.
No estudo EMIS, publicado no início de dezembro, um questionário eletrônico foi aplicado a 38.439 homens gays e bissexuais habitantes da Europa. Entre 30 e 50% dos participantes relataram ter feito algum exame para ISTs no ano anterior à pesquisa. Desses, na maioria das vezes o exame foi apenas uma sorologia para HIV ou hepatites virais.
O rastreamento de infecção anal por gonorreia e clamídia, por exemplo, foi feito por menos de 10% dos que tinham feito algum exame em capitais como Atenas, Varsóvia e Bucareste. Já em cidades como Amsterdam, Dublin, Londres e Estocolmo, esse exame foi feito por mais de 70% dos respondentes.
Não por coincidência, entre os habitantes das cidades em que o rastreamento para gonorreia e clamídia foi feito com maior frequência também foi encontrada maior proporção (85%) de pessoas que diziam revelar sua orientação sexual homossexual aos profissionais da saúde.
A Coordenadoria de IST/HIV da cidade de São Paulo, a partir de 2020 iniciou um projeto de implementação da rotina de testagem para gonorreia e clamídia entre os usuários de PrEP. Em dados preliminares divulgados recentemente, quase 10% dos indivíduos testados eram portadores assintomáticos de gonorreia ou clamídia retal.
As reflexões que podemos fazer a partir dos dados apresentados são várias. Primeiro, para que se obter uma resposta positiva nesse enfrentamento é necessário que se implemente uma vigilância ativa dos casos para gerar dados sobre essas infecções. Sabendo o tamanho dos números, poderemos promover a ampliação do acesso ao rastreamento de assintomáticos entre os mais vulneráveis e, com o tratamento adequado deles, veremos enfim a incidência dessas bactérias começar a cair.
Além disso, nada desse plano terá sucesso se os serviços de saúde forem locais de vivência de estigma e discriminação por populações marginalizadas. Assim, é igualmente importante o trabalho de capacitação e sensibilização dos profissionais da saúde.
O caminho é longo e trabalhoso, mas se eu conseguir com esse artigo convencer alguém de que uma estratégia de prevenção que se baseia unicamente na recomendação do uso da camisinha é incapaz para controlar as epidemias de gonorreia e clamídia, já considerarei que minha missão foi cumprida.
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