Gases só exigem avaliação médica se frequência aumentar muito
Cristina Almeida
Colaboração para VivaBem
18/10/2022 04h00
Pouco antes do primeiro milênio, o polímata persa Avicena, que escreveu 40 tratados sobre medicina, já descrevia os gases como um incômodo causado pelo consumo excessivo de alimentos, especialmente feijões e grãos, além de itens salgados e defumados. Hoje a ciência não só confirmou suas teorias como reconheceu a dieta como principal fator desencadeante desse sintoma.
Considerado uma queixa comum entre homens, mulheres de todas as idades e mesmo entre as crianças, os gases também são reconhecidos como uma manifestação benigna cuja origem é a presença de excesso de ar ou outros gases no aparelho digestivo. Uma das suas apresentações mais comuns, a flatulência, está presente em 15% a 30% da população em geral.
Embora possa causar dores, desconforto e até embaraço, e também se relacione com doenças como a síndrome do intestino irritável, na maioria das vezes o problema pode ser controlado com mudanças no estilo de vida, em especial a adoção de uma dieta conhecida como FODMAP, caracterizada pelo consumo reduzido de alimentos como feijões, grãos e açúcares. Exercícios físicos e de postura, igualmente, compõem o plano de tratamento.
O que são gases?
Eles são definidos como substâncias que não possuem nem forma e nem tamanho, mas podem ocupar determinado espaço.
Os gases encontrados no sistema digestivo possuem duas origens: o ar a mais que engolimos (oxigênio) e os produzidos pelo processo de degradação dos alimentos no intestino, ou seja, pelo metabolismo bacteriano (hidrogênio, metano e o dióxido de carbono).
Por que isso acontece?
Presentes naturalmente nas partes superior e inferior do aparelho digestivo, quando são excessivos, os gases são expelidos por meio da boca e/ou ânus.
No primeiro caso, esse processo é chamado de eructação (arroto); no segundo, ele é conhecido como flatulência.
Essa maior quantidade de gases pode estar relacionada a vários fatores como hábitos alimentares, problemas digestivos ou psicossociais, infecções intestinais e uso de medicamentos. Confira alguns exemplos:
- Consumo de balas, chiclete
- Ingestão de bebidas gaseificadas
- Uso de medicamentos em sua forma efervescente (outro exemplo é a metformina)
- Ansiedade
- Próteses mal ajustadas
- Gotejamento pós-nasal (excesso de muco local)
- Síndrome do intestino irritável
- Parasitoses
- Refluxo gastroesofágico
- Inflamações gástricas
- Alterações anatômicas decorrentes de cirurgias que favoreçam desequilíbrio da flora intestinal
- Desequilíbrio da flora intestinal
- Doença celíaca
- Enfraquecimento da musculatura abdominal (pós-gestação)
- Consumo de determinados alimentos (farelo de trigo, repolho, couve-flor, brócolis, feijão)
- Ingestão de leite e seus derivados (intolerância à lactose)
- Consumo de itens que contenham sorbitol, sacarina etc. como ingredientes
Conheça os sintomas relacionados
O mais comum deles é a distensão abdominal, isto é, aquela sensação de aumento da barriga, seguida da flatulência e da eructação. Mas podem também estar presentes:
- Dor ou cólica abdominal
- Dor no peito
- Dor na parte lateral da barriga, simulando uma apendicite
Quando é a hora de procurar ajuda médica?
De modo geral, as passagens de gases são consideradas normais, e acontecem cerca de 13 a 21 vezes ao dia. Mas existem algumas pessoas mais sensíveis a eles e, para elas, as mínimas ocorrências geram maior desconforto.
Por outro lado, os gases podem estar relacionados a determinadas doenças e, portanto, esse sintoma precisa ser avaliado por um especialista, especialmente quando eles aumentam de frequência e/ou intensidade, e ainda estejam acompanhados de outras manifestações, que são consideradas sinais de alerta para não adiar a consulta. São eles:
- Diarreia
- Febre
- Náusea ou vômito
- Sangramento retal ou nas fezes
- Gordura nas fezes
- Perda de peso sem motivo aparente
Os médicos treinados para fazer essa avaliação são o clínico geral (generalista) e o gastroenterologista.
Como é feito o diagnóstico?
Na hora da consulta, o médico ouvirá a sua queixa, fará o levantamento do histórico de saúde pessoal e familiar, especialmente para que você possa informá-lo de hábitos e comportamentos que possam estar associados aos gases.
Esteja pronto para responder a ele quando é que os gases aparecem com maior frequência, se há algum alimento em especial relacionado ao desconforto, ou mesmo se você percebe que o problema aumenta em momentos de estresse. Todos esses elementos ajudarão o especialista a fazer o diagnóstico, que também contará com dados do exame físico que identificará a possível presença da distensão abdominal.
"Não existe um exame específico que seja indicado nesses casos", fala Luiz Ernesto de Almeida Troncon, professor da Divisão de Gastroenterologia do Departamento de Clínica Médica da FMRP-USP. "Mas a depender das características da queixa e da idade do paciente, e considerando que outras doenças como a síndrome do intestino irritável ou a intolerância à lactose estão relacionadas ao excesso de gases, o médico poderá solicitar endoscopia e até colonoscopia", explica o médico.
Entenda como é o tratamento
Gustavo Lima, médico do Ambulatório de Gastroenterologia do HC-UFPE, afirma que quando os gases se relacionam a alguma doença como a parasitose ou a intolerância à lactose, por exemplo, elas deverão ser tratadas. Quando este não é o caso, o objetivo do tratamento é identificar o principal sintoma relacionado aos gases para aliviar o desconforto que ele causa.
Lima acrescenta que, por vezes, os exames realizados não mostram alterações e, portanto, a conduta é educar o paciente a adotar hábitos de vida saudáveis. Isso inclui uma dieta mais adequada, com redução do consumo de alimentos que, para ele, possam desencadear o sintoma. Afinal, o que pode causar gases para uns, para outros nada causa.
Associam-se a essa medida a prática de exercícios físicos e posturais. Nos casos em que essas medidas não tragam a resposta esperada, pode ser sugerido o uso de probióticos. "Embora ainda não exista um consenso sobre a sua efetividade, ela pode ser uma alternativa para esses pacientes", esclarece o médico.
Em alguns quadros, o uso de medicamentos poderá compor o tratamento. Os mais utilizados são antiflatulentos como a simeticona (para determinados pacientes ele traz alívio), antibióticos, antidepressivos tricíclicos, antiespasmódicos, entre outros.
Principais mudanças na dieta
De acordo com a nutricionista Flavia Auler, coordenadora do curso de nutrição da PUC-PR, a medida dietética mais efetiva para pessoas com gases é a dieta FODMAP, sigla em inglês para Oligossacarídeos, Dissacarídeos, Monossacarídeos e Poliois Fermentáveis. O objetivo dela é reduzir o consumo de alimentos que se incluem nessas categorias. Confira alguns exemplos desses itens:
- Feijão
- Ervilha
- Lentilha
- Soja
- Alcachofra
- Couve-flor
- Repolho
- Aspargo
- Cebola
- Alho
- Lentilha
- Cenoura
- Ameixa
- Adoçantes artificiais
- Derivados do leite
- Grãos integrais
O paciente é estimulado a responder a um questionário e a fazer uma espécie de diário para identificar os alimentos que, para ele, são formadores de gases, distensão e dor abdominal. Essa lista é sempre personalizada, o processo de identificação leva tempo, e não resultará na exclusão completa desses itens do cardápio, já que eles possuem nutrientes importantes. No entanto, vai-se encontrando uma forma de ingestão que reduza o incômodo.
Auler acrescenta que é essencial investir no equilíbrio da flora intestinal, o que se faz também com a redução, ao mínimo possível, do consumo de ultraprocessados: "Eles são recheados de ingredientes fermentativos como o açúcar (dissacarídeo), o xilitol e o zorbitol (poliois), por exemplo, conhecidos causadores de gases", diz.
Dá para prevenir?
Quando o sintoma incomoda, mas não se relaciona a alguma enfermidade, é preciso estar mais atento aos alimentos e comportamentos que aumentam o desconforto. Para prevenir, coloque em prática as seguintes medidas:
- Coma mais devagar para evitar a ingestão de ar em excesso
- Evite as bebidas gaseificadas
- Prefira ingerir líquidos e comer frutas 1 hora após as refeições
- Reduza o consumo de gomas de mascar e balas duras
- Prefira usar canudos ao ingerir líquidos
- Evite alimentos que contenham frutose, sacarose, sorbitol e rafinose
- Adicione gengibre, cominho, salsinha, manjericão, endro no cardápio diário. Essas ervas têm provado aliviar o sintoma
Fontes: Flavia Auler, nutricionista, doutora em ciências da saúde e coordenadora do curso de nutrição da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná); Gustavo Lima, médico do Ambulatório de Gastroenterologia do HC-UFPE (Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco), vinculado à rede Ebserh, presidente da FBG-PE (Federação Brasileira de Gastroenterologia - Regional Pernambuco) e professor da disciplina de gastroenterologia da Uninassau (PE); e Luiz Ernesto de Almeida Troncon, professor da Divisão de Gastroenterologia do Departamento de Clínica Médica da FMRP-USP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo). Revisão médica: Gustavo Lima.
Referências: ACG (Colégio Americano de Gastroenterologia); Zhang L, Sizar O, Higginbotham K. Meteorism. [Atualizado em 2021 Out 21]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022 Jan-. Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK430851/; Lacy BE, Gabbard SL, Crowell MD. Pathophysiology, evaluation, and treatment of bloating: hope, hype, or hot air? Gastroenterol Hepatol (N Y). 2011 Nov;7(11):729-39. PMID: 22298969; PMCID: PMC3264926.