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Saúde

Sintomas, prevenção e tratamentos para uma vida melhor


"Fui em mais de 50 médicos para descobrir doença de Lyme e vivo em luta"

Arquivo pessoal
Imagem: Arquivo pessoal

Bárbara Therrie

Colaboração para o VivaBem

19/01/2020 04h00

Há 21 anos, Ana Elisa Salles Paes, 61, luta contra a doença de Lyme —a mesma que o cantor Justin Bieber anunciou ter na última semana. Ela demorou dez anos para descobrir que foi picada por um carrapato infectado por uma bactéria. Nessa longa caminhada, Ana afirma que a doença é uma gangorra: "Eu pioro e melhoro. Meu corpo fica em luta permanente, é exaustivo". Leia abaixo o depoimento dela:

"Por volta de 1999, comecei a apresentar os primeiros sinais da doença de Lyme. Eu tinha dores articulares, febre, cansaço, fadiga, dor de cabeça. As dores migravam pelo corpo. Eu sentia uma dor no cotovelo, ela sumia e, dez minutos depois, ela voltava em outro lugar, na mão, por exemplo. O local da dor ficava inchado e vermelho.

Em dez anos, eu passei por mais de 50 médicos, entre neurologista, ortopedista, ginecologista, reumatologista. Cheguei a fazer uma cirurgia no joelho de forma equivocada por orientação de um profissional, e recebi vários diagnósticos errados: fibromialgia, esclerose múltipla, artrite, artrose e até depressão. Já ouvi de um médico que era coisa da minha cabeça. Ele me mandou procurar terapia, disse que era psicossomático. Como se a minha parte psicológica fizesse eu achar que eu estava doente e eu criasse os sintomas, ou seja, como se eu estivesse maluca. E realmente já cheguei a pensar que eu estava doida.

Ana Elisa - doença de Lyme 1 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ana faz ozonioterapia em Nova York (EUA) a cada três meses
Imagem: Arquivo pessoal

Por indicação de uma amiga, fui em um clínico geral e acupunturista. Cheguei lá com uma mala de rodinhas cheia de exames. Ele viu, me examinou, contei meus sintomas e ele falou: 'Acho que você tem a doença de Lyme'. Ele me pediu para fazer uma sorologia para Lyme no laboratório da USP e deu positivo.

Foi um alívio saber o que eu tinha

Fui diagnosticada em janeiro de 2009, nunca tinha ouvido falar da doença. O médico explicou que eu fui picada por um carrapato e que ele estava infectado por uma bactéria, a Borrelia burgerdorferi. Eu não faço ideia de onde fui picada, só sei que fiquei doente, nunca mais sarei e essa doença mudou a minha vida. Eu chorei de alegria por saber que eu não era louca. Era um alívio saber o que eu tinha, poder nomear a doença. Na época havia poucas informações sobre Lyme na internet, na literatura médica e praticamente nenhum especialista na área no Brasil.

A partir daí, teve início uma longa jornada para eu me tratar. Inicialmente, o médico que me diagnosticou me indicou acupuntura, fitoterapia e receitou antibiótico. Eu tive uma boa melhora. Alguns anos depois esse médico foi morar fora do país e começou a minha saga por um novo profissional que me apoiasse. Procurei uns 20 médicos, alguns chegaram a me falar claramente que não acreditavam na doença de Lyme. Como se essa doença fosse uma crença, uma religião, e não um fato.

Em 2015 fui para a Alemanha fazer um tratamento experimental que, em tese, mataria a bactéria. O procedimento custou em torno de R$ 120 mil e, infelizmente, não funcionou comigo. Em 2017, piorei muito e fui para Nova York, nos EUA, em busca de um novo tratamento com um especialista em Lyme. A cada três meses viajo para lá para passar com esse médico.

Pouco tempo depois, encontrei um médico brasileiro que se interessou pelo meu caso, passou a me acompanhar aqui e montou um protocolo eficiente. Faço os exames e trago as medicações do exterior.

Entre remédios e suplementos, tomo 38 cápsulas por dia.

Atualmente, meu tratamento consiste em antibióticos via oral e intravenosa e infusão de imunoglobulinas. Tenho melhorado a cada dia.

Já gastei quase R$ 1 milhão em mais de 20 anos

Ana Elisa - doença de Lyme 2 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Ana com o marido Sérgio: "O apoio do meu marido foi fundamental para ter forças"
Imagem: Arquivo pessoal

Em 21 anos de tratamento —desde a época em que eu não tinha o diagnóstico correto— já gastei aproximadamente R$ 1 milhão. Me considero uma sortuda por ter condições financeiras de me tratar. Se não tivesse, provavelmente estaria ainda mais debilitada. Na primeira consulta com meu médico americano, ele ficou surpreso quando viu que eu não estava em uma cadeira de rodas. Ele disse que em 30 anos de experiência nunca tinha visto uma paciente com tanto tempo com a doença, e sem um tratamento adequado, ainda andar.

Com o tempo, fui parando de fazer as coisas que eu gostava: natação, dança, artesanato. Em 2012, parei de trabalhar definitivamente. Eu me formei em gastronomia, mas nunca consegui exercer a profissão por causa dos sintomas. Recuso muitos convites e não marco compromissos, porque nunca sei como vou estar me sentindo. Se estou bem, quero abraçar o mundo, mas se estou mal, fico reclusa. Essa doença é uma gangorra. Eu pioro e melhoro. Meu corpo fica em luta permanente, é exaustivo. Como diz meu médico, essa doença não mata, mas tira a vida das pessoas.

Devido ao diagnóstico e tratamentos corretos tardios, a Lyme me acarretou várias complicações e o meu quadro é considerado severo. Tenho a doença na forma crônica. Sinto dores na maior parte dos dias e tive três paralisias faciais nos últimos dois meses.

Também tenho alguns problemas cognitivos. Já tive episódios de esquecer as coisas e de não lembrar as palavras. Teve um dia em que eu estava dirigindo para casa e tive uma desorientação espacial, não sabia para onde estava indo e fui parar em outro lugar. Liguei para o meu marido, o Sérgio, e ele me ajudou a voltar para casa. Fiquei com medo e parei de dirigir por meses. Depois voltei.

Outra condição muito difícil é que eu tenho um nevoeiro cerebral. Não consigo pensar e quando leio, fico cansada e perco a concentração. Outra situação é quando estou rodeada por muitas pessoas, me perco no meio da conversa. Isso afeta a minha vida social e me causa uma profunda tristeza.

O apoio do meu marido, meus três filhos e amigos foi fundamental para ter forças para prosseguir nessa difícil jornada.

Em outubro de 2019, eu e o médico Carlos Levischi criamos um grupo no Facebook chamado Doença de Lyme para difundir informações corretas sobre a doença no Brasil.

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Quantidade de medicamentos que Ana toma a cada três meses
Imagem: Arquivo pessoal

Sonho em fundar uma associação

Muitas pessoas que foram picadas por carrapatos ficam sabendo do meu caso e me procuram buscando orientação. Relatam o mesmo que aconteceu comigo: já foram em vários médicos e só vão piorando.

Eu fico especialmente triste em acompanhar a batalha dos pacientes que não possuem recursos para buscar um tratamento adequado.

É por isso que meu sonho, além de ficar completamente remida da doença, é fundar uma associação para divulgar o Lyme e dar suporte para esses pacientes. Só estou viva porque sou persistente, porque não desisti de descobrir o que tinha e de me tratar corretamente. Os outros portadores de Lyme também merecem a oportunidade de ter acesso à informação de qualidade, de serem diagnosticados e tratados com respeito e dignidade".

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Ana Elisa demorou mais de 10 anos para ser corretamente diagnosticada com doença de Lyme
Imagem: Arquivo pessoal

A pedido do VivaBem, Carlos Levischi, especialista em medicina pulmonar e doença de Lyme, que atende no Hospital Albert Einstein (SP), tirou as principais dúvidas sobre doença:

1) O que é a doença de Lyme e como ocorre sua transmissão?
A doença de Lyme é transmitida por carrapatos e, em nosso país, o principal carrapato conhecido pela transmissão é o carrapato-estrela (Amblyomma cajennense) e causada por uma bactéria chamada Borrelia burgerdorferi. Para que haja a transmissão, o carrapato precisa ficar pelo menos 24 horas grudado no corpo do indivíduo. O primeiro caso descrito no Brasil foi em 1992 e de lá para cá a incidência tem aumentado consideravelmente. O carrapato pica o animal contaminado, que pode ser silvestre ou doméstico --no Brasil, já foram encontrados DNA da bactéria em gambás, roedores, bovinos, equinos e em cães-- e depois pica o ser humano transmitindo a doença.

A bactéria entra na corrente sanguínea e pode se espalhar teoricamente por quaisquer órgãos ou tecidos, mas ela tem preferência por locais que possa se esconder do sistema imunológico, como articulações ou o cérebro. Ela também tem uma característica importante, que é mudar de forma de acordo com os estímulos externos como, por exemplo, os antibióticos. Nessa mudança, ela altera suas proteínas da membrana, o que torna ainda mais difícil seu reconhecimento pelo sistema imunológico. Logo, nossas defesas percebem que existe algo errado, mas não sabem ao certo o que é. Isso tem impacto muito grande nos sintomas da doença, que pode simular doenças autoimunes devido a um estado "hiper alerta" das nossas defesas.

2) Quais os sintomas?
Os primeiros sintomas podem aparecer de 3 a 32 dias após a picada, e podem incluir fadiga, cefaleia, febre, sudorese, calafrios, dor muscular e uma lesão na pele característica em formato de alvo, chamada eritema migratório. Existem formas mais graves, onde a Borrelia atinge o sistema nervoso central e pode causar confusão mental, sonolência excessiva e meningite. Às vezes, a infecção inicial pode ter sintomas bem fracos ou ser assintomática.

3) Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico da doença de Lyme é primariamente clínico, depende de o médico realizar um bom histórico do paciente e pensar que pode ser a doença de Lyme --menos de 30% dos indivíduos apresentam o eritema migratório. O próximo passo é realizar exames de sangue, que procuram no doente anticorpos contra a bactéria do Lyme. O problema é que esses anticorpos demoram de duas a seis semanas para serem detectados no sangue, dificultando o diagnóstico correto e início do tratamento. Na fase aguda, a doença de Lyme pode ser confundida com uma gripe. Na forma crônica, a confusão no diagnóstico pode ser grande. Segundo estudos norte-americanos, 61% dos pacientes sofreram mais de dois anos antes de obter o diagnóstico correto da doença de Lyme, e foram diagnosticados previamente como portadores de transtornos de humor, fibromialgia e depressão.

4) Quais complicações podem ocorrer se o diagnóstico for feito tardiamente?
Com o diagnóstico tardio ou com o tratamento realizado de forma inadequada, a doença pode evoluir para sua forma crônica, conhecida por ser multissistêmica, isto é, atinge diversos órgãos ao mesmo tempo. Os sintomas mais comuns da doença crônica são fadiga, dor muscular, dor articular, problemas de sono, neuropatia e depressão.

5) Qual o tratamento para a doença de Lyme e como é o atendimento no SUS?
O tratamento é realizado com esquema de antibióticos, que atinjam todas as formas da Borrelia. Existem mais de 230 estudos em inglês que atestam a existência da forma crônica da doença, com grande prejuízo físico e emocional. Nos casos mais severos, há indicação de antibióticos por via endovenosa e infusão de imunoglobulinas --anticorpos externos vindos de doadores são dados para aumentar as defesas do paciente.

O atendimento por meio do Sistema Único de Saúde depende muito da conscientização do médico que está atendendo considerar a doença de Lyme e tentar diagnosticá-la, porém isso não é muito diferente do que acontece nos serviços particulares —às vezes o profissional de saúde nem sabe da existência da doença no Brasil. Quando pensamos nas exceções —casos que foram diagnosticados corretamente como doença de Lyme crônica no SUS— vejo uma dificuldade muito grande de encontrar um profissional versado na doença e que consiga suprir todas as necessidades dos pacientes em uma abordagem multiprofissional, que inclua médico, enfermagem, nutricionista, fisioterapia.

É importante serem realizadas campanhas de conscientização no meio médico para a existência da doença, bem como estudos sérios epidemiológicos que certifiquem o grau de contaminação dos carrapatos em nosso país. Uma boa notícia é que o sangue de pacientes do SUS de todo o Brasil pode ser enviado para o LIM-17 da Universidade de São Paulo, um dos lugares do país de maior experiência e confiabilidade no diagnóstico sorológico da doença de Lyme. Deve ser realizado contato prévio com o setor para a orientação de como enviar o material.

6) Como se prevenir das picadas de carrapatos?
Existem algumas formas de se prevenir das picadas de carrapatos, como: usar repelentes que contém DEET na fórmula, usar roupas que cubram o corpo, como como camisetas de manga longa, calça comprida e botas em trilhas. Tomar banho após retornar das atividades ao ar livre e observar as regiões do corpo que são mais suscetíveis à picada, como couro cabeludo, axilas, umbigo.

A pessoa pode ser picada pelo carrapato ou por sua ninfa, que é a sua forma jovem, sem perceber. Caso ela perceba e ache algum carrapato grudado no corpo, o ideal é retirá-lo com uma pinça o mais rápido possível. Como não há áreas endêmicas mapeadas no Brasil, é indicado procurar serviço médico para que o profissional de saúde defina se vai iniciar a profilaxia com antibiótico ou não. Menos de 26% dos doentes de Lyme perceberam o carrapato.

7) Há dados de quantas pessoas são acometidas pela doença de Lyme no Brasil e no mundo?
Nos Estados Unidos, o país que possui os estudos mais avançados em relação à doença de Lyme, a incidência é de aproximadamente 300 mil novos casos por ano, sendo a doença transmitida por vetores mais comuns em território norte-americano. Por ser uma doença sub-diagnosticada em nosso país, é quase impossível prever a verdadeira incidência da doença, mas posso afirmar que existem casos em todas as regiões do Brasil. Lyme é considerada uma doença de notificação obrigatória pelo Ministério da Saúde, embora não existam dados oficiais do órgão.

8) A doença de Lyme tem cura?
A doença de Lyme tem cura e a probabilidade aumenta quanto mais precoce é realizado o diagnóstico. Em casos considerados crônicos, a cura se torna mais difícil. A bactéria consegue se esconder tão bem do sistema imunológico e dos antibióticos, que vai ficando cada vez mais complicado erradicar completamente a infecção. No entanto, o paciente pode se beneficiar de ciclos de antibióticos nos períodos de piora dos sintomas, fisioterapia, suplementos e multivitamínicos, ozonioterapia, meditação, analgésicos e, o principal, o apoio da família e dos amigos.