Comer alimentos muito quentes pode provocar desde úlceras a alguns cânceres
Se por um lado o ser humano ter aprendido a aquecer seu próprio alimento ajudou a espécie evoluir, por outro, com o passar do tempo, contribuiu para o aumento de problemas e doenças bucais e do sistema digestivo provocadas pelo uso extremo e excessivo do calor.
Esquentadas demais, bebidas, ou mesmo comidas sólidas, podem queimar o palato (céu da boca), a língua, causando sensação de dormência por um período curto, e mais, inchaços, inflamações e úlceras em mucosas e tecidos.
"O calor excessivo sobre a mucosa oral, por exemplo, provoca uma descamação, que, se for contínua, pode levar no longo prazo a uma lesão cancerígena. Seria o mesmo efeito do sol sobre a pele", diz Marcos Moura, endodontista pela Unesp (Universidade Estadual Paulista) e membro da Associação Brasileira de Halitose.
Moura acrescenta que ardência contínua na região em que aconteceu a queimadura também é comum e no curto prazo as células descamadas da mucosa podem ainda se depositar sobre o dorso da língua, aumentando a saburra, uma secreção esbranquiçada ou amarelada, e com isso causar mau hálito (halitose), devido à fermentação das bactérias.
O hábito de se consumir alimentos muito quentes também pode causar câncer de esôfago. De acordo com um estudo publicado em 2019 no International Journal of Cancer, a ingestão diária de 700 mililitros de chá quente, a uma temperatura equivalente ou superior a 60ºC, eleva esse risco em cerca de 90%.
"Sabemos que na região sul do Brasil a incidência de câncer de garganta e esôfago é alta, e isso pode estar associado ao consumo de bebidas quentes, como o chimarrão", observa Marcos Belotto, gastrocirurgião do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
Esse tipo de consumo frequente causa lesões nos tecidos internos e, segundo o médico, pode se estender para o estômago também, embora o dano seja menor, pois à medida que o alimento passa de um órgão para outro, a temperatura diminui.
Durante um estágio inicial, pode não haver sintomas, mas as dores são sentidas em quadros mais avançados. Além disso, a associação da lesão ao tabagismo e ao alcoolismo pode agravar ainda mais a situação.
Certos alimentos são mais perigosos
Tudo que seja consumido a temperaturas extremas, para mais ou para menos, faz mal. Porém, alguns alimentos, quando superaquecidos, podem provocar estragos maiores do que outros. São eles os líquidos, por entrarem e se espalharem mais rapidamente que os sólidos, e os alimentos condimentados, muito salgados e que fermentam e aumentam a acidez estomacal.
Na lista do que pode causar lesões por calor e, ao mesmo tempo, contribuir como fatores irritativos de órgãos não cicatrizados, ou inflamados estão: molhos industrializados, leite, café, frituras, vinho quente, certos tipos de chás, chocolate e sopas.
Às vezes, por causa da "queimação" frequente, a pessoa acaba recorrendo a medicamentos que combatem a produção de ácido, mas que por uso prolongado também podem favorecer a instalação de bactérias, como a Helicobacter pylori, que pode agravar gastrites, úlceras e levar ao câncer de estômago.
Frio também queima, mas menos
"Queimaduras pelo frio também podem ocorrer, mas o alimento gelado só chega a 'queimar' realmente se ficar muito tempo em contato com a pele, ou a mucosa. Os danos não são os mesmos que os provocados pelos alimentos quentes, mas podem ocorrer", acrescenta Daniela Balthazar, cirurgiã-dentista e especialista em implantodontia pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Em contato com comidas congeladas, é possível sentir desconfortos, como sensibilidade dentária (o que também pode ocorrer com o calor) em um ou mais dentes. Isso acontece quando a dentina (camada interna do dente) fica exposta, seja por desgaste, cárie, fratura, retração gengival, fazendo com que os estímulos de quente e frio atinjam o nervo, provocando dor.
Além disso, a queimadura por frio pode causar perda momentânea do paladar e atingir o esôfago e o estômago também, principalmente quando se toma água gelada em excesso.
Cuidados e tratamentos para lesões
A principal recomendação para evitar acidentes com alimentos quentes ou frios é esperar que eles fiquem em temperatura ambiente para poder consumi-los. No caso dos líquidos, após a fervura, é importante que sejam mantidos sobre uma superfície fria por cerca de cinco minutos antes de serem engolidos.
Quanto menor seu volume, menor será o tempo de espera. Fracionar as refeições também evita queimaduras extensivas, principalmente, se por um descuido, você não percebeu que o alimento estava "pelando" quando o colocou na boca.
Se deu o azar de se queimar, o tratamento indicado vai depender do grau da lesão. "Geralmente, a maioria dos casos é de queimaduras de primeiro grau e que não requerem ajuda especializada, melhorando após alguns dias. Ao sofrer uma queimadura de segundo ou terceiro graus, os tecidos sofrem danos mais sérios, portanto, precisam de cuidados clínicos específicos o quanto antes", informa Juliana Brasil, dentista na clínica de oncologia médica Clinonco e especialista em estomatologia pelo Complexo Hospitalar Heliópolis, em São Paulo.
Na boca, caso a dor seja leve e não atrapalhe a fala nem a alimentação, manter uma dieta leve, isenta da ingestão de alimentos irritativos, e também os crocantes e os cítricos evita maiores complicações e agiliza a recuperação natural.
Bochechar água fria por 2 a 3 minutos, ou tomar sorvete ou iogurte não muito gelados também ameniza os sintomas de queimados. No momento da formação da lesão, não é indicado aplicar nela creme dental nem enxaguante bucal que contenha álcool, pois eles podem irritá-la ainda mais. Já a sensibilidade dentária pode ser tratada com cremes dentais específicos, mas, se persistente, deve ser investigada.
Queimaduras de segundo e terceiro graus, percebidas pela dor intensa e persistente e mudança de aspecto da mucosa precisam de atendimento de emergência e tratamento com laser terapia infravermelha, analgésicos e outros medicamentos, com ação antibiótica, antisséptica e cicatrizante. Independente do grau da lesão, a região precisa de higienização frequente para não haver contaminação, o que inclui dobrar a atenção com a escovação.
Quanto ao esôfago e estômago, o cuidado principal, de acordo com Belotto, é evitar novas agressões para evitar doenças futuras e procurar um médico se houver sintomas frequentes, como dor e sensação de ardor. "Existem remédios que ajudam na cicatrização desses órgãos, formando uma película de proteção. Geralmente, a recuperação leva até 30 dias", diz.
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