Morar sozinho na pandemia não é fácil; veja como lidar com a solidão
Eu moro sozinha há apenas três anos, mas nunca havia me sentido só como nessa quarentena. Estou há mais de 70 dias em casa e as sensações variaram de chorar enquanto lavo louça, rir das loucuras dos vizinhos, ter medo de adoecer e ninguém ficar sabendo ou de enlouquecer.
Felizmente, se assim posso dizer, conversando com amigos que também moram sozinhos, a situação é um pouco parecida e os altos e baixos da saúde mental são uma constante. Sentir-se só, então, tornou-se uma sensação em conjunto, por mais estranho que isso possa parecer.
Vera Iaconelli, doutora em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo) e diretora do Instituto Gerar, diz que a estranheza do momento se baseia no fato de que, na quarentena, a solidão é forçada. "Não é que hoje eu quero ficar o dia inteiro na minha casa. Eu tenho que ficar, mesmo quando eu não quero", diz. Segundo ela, essa situação é uma privação de uma experiência importante, porque nós somos "seres de laço".
A sociabilidade do ser humano não é uma simples teoria. Diversos estudos já comprovaram que a solidão pode levar a sérias consequências. Seus efeitos sobre a saúde são comparáveis aos da obesidade, abuso do álcool e de fumar 15 cigarros por dia, aumentando o risco de morte prematura em 30%.
Antes mesmo da quarentena, a solidão já era uma questão mundial. Em 2018, por exemplo, o Reino Unido criou o Ministério da Solidão, para enfrentar o problema no país. Um levantamento feito em 2017 pela Sociedade de Geriatria e Gerontologia de São Paulo revelou que 29% dos brasileiros temem a solidão.
"Em tempos normais, as pessoas têm se isolado cada vez mais. É aquele contato raso de só mandar um 'está tudo bem?' ou mandar uma foto de um prato, por exemplo", diz Denise Gobo, médica psiquiatra da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e membro da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria). Segundo ela, as pessoas ocupam (ou ocupavam) o tempo com atividades para não pensar sobre os sentimentos, sobre o que as angustia, ou sobre para a direção que suas vidas têm seguido.
"Normalmente, você não tem contato com aqueles momentos de tédio, de tranquilidade, para pensar o rumo que você vem tomando na vida, pensar o quanto te chateou determinada situação ou não", diz. Agora, na pandemia, entramos em contato com esses sentimentos de forma forçada. "Temos esse tempo maior, principalmente quem mora sozinho, para entrar em contato com as suas angústias, seus medos, suas ansiedades. E saber o que fazer com isso é o que deixa a gente mais angustiado e ansioso ainda".
Uma pesquisa realizada em janeiro nos EUA sobre solidão, conduzida pela empresa Cigna, indicou que os principais fatores correspondentes à solidão eram a falta de apoio social e poucas interações sociais significativas.
Em uma entrevista ao jornal The New York Times, Doug Nemecek, diretor médico da Cigna, disse que o coronavírus agravou um problema que a sociedade já enfrentava. "Por causa da covid-19, isso está impactando muitos mais de nós. Estamos socialmente distanciados. Não podemos interagir com amigos ou vizinhos. Não podemos visitar pais idosos que estão em lares de idosos", disse. "Tudo isso tem o potencial de impactar como nos sentimos da conexão social e da solidão."
Solidão com a família
Não são apenas os que moram sozinhos que estão encarando a solidão durante a pandemia. Quem está em casa com a família toda também pode sentir o mesmo, dependendo do tipo de interação que se tem. "Muitas vezes, apesar de estarem em uma convivência forçada, essas pessoas não se veem, não se conectam", diz Gobo.
A família que passa o dia todo junto, mas cada um fazendo suas atividades, sem determinar um tempo de qualidade entre si, é o exemplo clássico. "Não tem tempo para brincar com os filhos, não tem tempo para o parceiro e acaba se mantendo da mesma forma, isolado dentro de suas atividades, da rotina, não entrando em contato com essa vivência forçada", diz a psiquiatra. Segundo ela, as pessoas não conversam, ficam só conectadas o tempo todo.
Iaconelli diz que, pelo índice de aumento de violência doméstica, muita gente não está bem. E mesmo que não chegue à violência, tem também situações bem desagradáveis. "O aumento de divórcios, por exemplo, é considerável nessas épocas. Então, depende da qualidade da companhia".
É óbvio que faz diferença ter alguém com quem conversar, para quem se queixar, para quem cozinhar ou que cozinhe para você. Toda essa troca ameniza a aridez do dia a dia, mas tem que ser uma troca de qualidade. "E aí vale a máxima antes só do que mal acompanhado", diz Iaconelli.
Estreitar os laços
Para que esse período não seja de muito sofrimento, é preciso pensar como se convive com essa solidão, porque ela faz parte da vida, como os estudos mostram. Além disso, pensar como exercitar isso em uma situação extrema como a que estamos. "Lembrando que a quarentena não vai durar para sempre", diz a psicóloga. "São meses na vida de uma pessoa, não é que a gente caiu em uma ilha deserta e está sozinho irremediavelmente. Tem que também relativizar nossa solidão nesse momento, porque ela não é uma condenação para a eternidade".
No momento, vale administrar a sensação de estar só, buscando formas virtuais de estar presente. "A gente não pode esquecer que, para o ser humano, a solidão não se trata só da presença física do outro, mas tem muitas formas de a gente tocar o outro, estar próximo", diz Iaconelli. Cartas, mensagens virtuais, vídeo chamadas, telefone. São diversas as formas de entrar em contato com alguém.
De novo, esse contato deve ser de qualidade. É claro que, devido à pandemia, não queremos entrar em conversas muito profundas. Mas são elas que garantem contatos significativos. De acordo com as especialistas, são aqueles em que é possível se sentir reconhecido na própria dor, no sofrimento, que se pode falar o que se está sentindo sem ficar muito preocupado com o que o outro vai achar.
"São poucas as relações que são assim na vida de cada um, são raras, as das amizades preciosas, que não precisam ser muitas, mas são as quais você pode confiar a sua vida interior, o seu sofrimento, seu medo, suas inseguranças, sem precisar ficar consolando o outro", diz a psicóloga.
Gobo ainda sugere que se crie uma rotina. Acordar e dormir no mesmo horário, fazer todas as refeições do dia, arrumar a casa, abrir as janelas, fazer atividades físicas ou até mesmo um alongamento. "O corpo precisa ser estimulado para produzir substâncias que são antidepressivos naturais", diz. Além disso, tomar um pouco de sol por 15 minutos todos os dias. "Tudo isso gera uma qualidade de vida melhor e você pode ter um pouco mais de prazer dentro de casa, mesmo que sozinho".
O importante é saber que vai passar uma hora ou outra. Todo mundo passa por várias crises na vida e consegue se reorganizar. É óbvio que tudo bem continuar chorando enquanto lava a louça, mas é bom relativizar a situação também, para não parecer que é o fim do mundo. Iaconelli pede coragem: "Vamos sobreviver a essas semanas, voltar a nossa vida, enfrentar. Tem que relativizar o período, que não é absoluto. Coragem agora para encarar o tempo que resta para lidar com esse sofrimento".
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