'Comida para mim era como droga para um dependente químico'
Ao comer, Margareth Miliauskas, 55, tinha a mesma sensação que um dependente químico quando usava uma droga. "Eu sentia uma fissura, se eu não comesse, não conseguia mais pensar nem fazer nada". Diagnosticada como dependente de comida, a vendedora era viciada em carboidrato e café, e já tentou fumar para trocar o vício pela comida. Conheça a história dela e entenda mais sobre esse transtorno.
"Desde criança eu brigava com a balança. Com 12 anos eu pesava 55 kg e com 15 comecei a tomar remédio para emagrecer. Meu pai dizia que eu estava gorda e uma das minhas irmãs fazia bullying me chamando de elefante.
Eu tive três filhos, a cada gestação eu engordava mais, fazia dieta, perdia peso, mas depois engordava de novo. A minha relação com a comida ia além do comer para ficar saciada. Eu comia quando ficava aborrecida, ansiosa, com raiva ou quando discutia com alguém.
Comia 5 pães e tomava 500 ml de café por dia
Eu era viciada em carboidrato, principalmente em pão e bolo, e em café. Eu tinha um ritual. Todos os dias comia 3 pães e 300 ml de café de manhã, com duas colheres de açúcar, e dois pães e 200 ml de café à tarde. Se eu não fizesse isso, ficava mal-humorada e não conseguia acordar direito e nem fazer as coisas que eu precisava.
Nos almoços de família, os parentes comentavam o tamanho do meu prato de 'pedreiro'. Era eu sentar na mesa e ouvia: 'Nossa, você vai comer tudo isso'. Para evitar esse tipo de comentário, eu pegava pouca comida na frente deles, por exemplo, uma colher de arroz. Depois que todo mundo saia, eu ia na cozinha escondida e comia direto da panela, cinco colheres e mais a mistura. Eu não fazia isso por fome, mas para tentar me acalmar. Me sentia culpada por ter exagerado e, às vezes, tomava laxante e diurético para não engordar.
Por causa dessa dependência da comida, eu evitava ir em festas porque eu sabia que ia comer muito. Eu não ia mais às confraternizações do trabalho para não passar vergonha na frente dos colegas. Toda hora que o garçom passava com o salgadinho, só eu pegava, todo mundo já estava satisfeito. Ninguém falava nada, mas eu percebia que as pessoas reparavam. Eu ficava constrangida e com raiva porque eu sabia que não era para eu fazer aquilo, mas eu não conseguia me controlar.
Fumava para trocar o vício pela comida
Cheguei a fumar para trocar a dependência pela comida. Como não tinha como comer no meu trabalho, eu fumava toda vez que sentia fome ou quando queria me acalmar e ter uma sensação de conforto e prazer. Eu tentava lutar contra esse vício. A comida para mim era como uma droga para um dependente químico, viciado em maconha ou cocaína. Quando eu iniciava uma dieta, eu me controlava por dois dias, no terceiro, eu já não aguentava mais a abstinência, ficava irritada e tinha uma recaída. Atacava o que via pela frente para compensar o que tinha deixado de comer. Eu sentia uma fissura, se eu não comesse, não conseguia mais pensar nem fazer nada.
Outra situação comum era, toda vez que eu passava na cozinha para ir à lavanderia da minha casa, eu tinha que parar para comer bolacha, pão, bolo. Às vezes eu conseguia passar direto, mas depois sempre voltava para dar uma beliscada.
De 2017 para 2018, eu fui dos 88 kg para os 93 kg. Foi uma fase difícil, havia anos que estava passando por problemas financeiros e pessoais. Nós tínhamos uma empresa familiar, que tinha sofrido uma explosão e nós perdemos tudo. Parei de trabalhar e fiquei em casa. Eu odiava fazer serviços domésticos, não me sentia mais realizada, entrei em depressão. Isso contribuiu para a minha dependência da comida e, consequentemente, para o ganho de peso.
Eu só conseguia emagrecer se tomasse remédio, isso não era normal, havia alguma coisa errada. Nesse mesmo ano, eu vi um anúncio procurando voluntários para participar de uma pesquisa de dependência de comida em um ambulatório do Hospital das Clínicas. Eu pensei: 'Será que esse é o meu problema?' Eu me inscrevi, participei de um processo seletivo e fui selecionada em 2019 para entrar no grupo. Fui diagnosticada como dependente de comida.
Fiz terapia em grupo e descobri por que comia
Foram quatro meses de terapia em grupo com psiquiatra, psicóloga e nutricionista comportamental. Os encontros eram uma vez por semana. Em uma dessas reuniões, a terapeuta fez um exercício onde revivi experiências da infância. Nesse processo, eu relembrei que eu era uma criança vulnerável com pouca autoestima, não me sentia amada pelos meus pais, fui abusada sexualmente por um parente aos dez anos de idade. Entendi que, essas situações vividas na infância trouxeram consequências para a minha vida adulta. O medo do abandono, da solidão, de achar que ninguém gostava de mim, me deixaram presa a um casamento por 30 anos.
Meu ex-marido dizia indiretamente que eu estava gorda, que ele não se sentia mais atraído por mim, reparava em tudo o que eu comia. Cheguei à conclusão de que eu comia por causa desse relacionamento abusivo.
Uma vez que identifiquei o problema de forma racional e parei de pensar, agir e comer apenas com as emoções, enxerguei as coisas de uma nova perspectiva e mudei minha vida. Me separei em novembro do ano passado, mudei de cidade, voltei a trabalhar e consegui emagrecer porque estava comprometida a me tornar uma pessoa melhor. Fui dos 93 kg aos 81 kg controlando minhas emoções, sem fazer nenhuma dieta radical, mas seguindo a pirâmide alimentar indicada pela nutricionista.
Preciso vigiar minhas emoções para não ter recaída
Ela me explicou que o alimento não é nosso inimigo, nem um vilão. Ela disse que comer nos nutre, nos faz bem, nos dá prazer. Eu não transfiro mais as minhas frustrações para a comida. Não sou mais viciada em carboidrato e café, mas ainda estou em tratamento terapêutico e medicamentoso. Quando encontro meu ex-marido, volto a comer e a engordar. Quando não tenho contato, fico estabilizada. Sou como um dependente químico que precisa se manter longe das drogas e buscar formas saudáveis de prazer para não recair. Eu preciso vigiar minhas emoções, neutralizar situações de estresse e ansiedade que me levam a comer compulsivamente para também não ter uma recaída".
Nunca ouviu falar em dependência de comida? Tire 7 dúvidas
O VivaBem conversou com Edgar Oliveira, psiquiatra, terapeuta cognitivo e coordenador grupo de Dependência de Comida do Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso (AMITI) do Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Universidade de São Paulo), para entender melhor o vício em comida. Tire algumas duvidas a seguir:
1. O que é dependência de comida?
Dependência de comida (DC) é o mesmo conceito de dependência química aplicado ao comportamento alimentar, ou seja, a hipótese de que alguns alimentos ou substâncias adicionadas a eles podem provocar dependência em pessoas suscetíveis, especialmente alimentos ricos em sal, açúcar e/ou gordura. A princípio, qualquer alimento que ative excessivamente o sistema de recompensa cerebral de uma pessoa vulnerável a desenvolver esta adição pode ser o ativador.
A ingestão repetida de alimentos que despertam muito prazer promove liberação excessiva e repetida de dopamina no sistema de recompensa cerebral, assim como ativação do sistema opioide, liberando endorfinas endógenas. Entretanto, assim como nem todo usuário de álcool faz uso problemático dele, nem todo consumidor de chocolate desenvolve uma relação de dependência. O número de estudos publicados sobre DC tem crescido muito, mas ainda não é um transtorno reconhecido pelos manuais diagnósticos.
2. Quais causas e fatores tornam uma pessoa dependente de comida?
Não há uma causa específica, mas acredita-se que o encontro de indivíduos com mais vulnerabilidade genética para desenvolver dependência de comida com o nosso atual ambiente obesogênico —que oferece fácil acesso a alimentos altamente industrializados e baratos - são mais suscetíveis ao desenvolvimento do transtorno.
Existe uma relação estatística com a obesidade, uma vez que essas pessoas têm sensação de descontrole comendo mais do que planejaram, pensam nos alimentos que lhe despertam mais prazer e frequentemente, mesmo sem fome, acabam consumindo bastante e têm prejuízos físicos (sobrepeso e lesões ortopédicas, por exemplo) e emocionais (culpa e baixa autoestima) como consequência da alta ingestão calórica. Por outro lado, o ganho de peso não é critério. Existem pessoas com DC que têm IMC normal ou até baixo peso.
Há uma relação epidemiológica importante com transtornos alimentares, chegando a 50% de sobreposição diagnóstica. Pessoas com transtorno de compulsão alimentar (TCA) ou bulimia associados com DC demonstram uma psicopatologia ainda mais grave. Entretanto, nem todas as pessoas que preenchem critérios para esses transtornos alimentares preenchem também para DC e, vice-versa, mostrando que são condições diferentes.
3. Quais os sintomas da DC?
Entre os mais comuns estão:
- Frequentemente comer mais do que planejou;
- Ter fissura (forte desejo) por alimentos específicos;
- Tentar controlar o consumo e não conseguir -- mesmo em vista dos prejuízos físicos e/ou emocionais;
- Gastar muito tempo em torno do comportamento alimentar;
- Ter sinais leves de abstinência quando suspende o consumo bruscamente.
4. Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico é feito, principalmente, através da entrevista clínica e do uso da escala de dependência de comida de Yale, atualmente na segunda edição. Nós traduzimos a escala e usamos na triagem e seguimento dos pacientes que absorvemos para tratamento grupal. Ela considera necessária para o diagnóstico que o quadro implique prejuízo ou sofrimento significativos, seja emocional ou físico, àqueles que desenvolvem adição por alimentos, além da presença de pelo menos quatro de 11 sintomas investigados, ocorrendo com bastante frequência. Os estudos de revisão descrevem duas vezes maior prevalência em mulheres do que em homens, e acima de 35 anos.
5. Dependência de comida e compulsão alimentar são a mesma coisa?
Dependência de comida e compulsão alimentar não são a mesma coisa. Os fenômenos de fissura, abstinência e tolerância são específicos de dependências e não são considerados nos critérios de transtornos alimentares. Por outro lado, na compulsão alimentar e bulimia, um critério importante é o impulso de comer uma quantidade grande de alimentos em menos de duas horas, com sensação de descontrole, várias vezes por semana - critério quantitativo ausente na DC.
Isso implica que uma pessoa com dependência de comida tende a buscar aqueles alimentos que mais lhe despertam prazer e pode ser beliscando pequeno volume no decorrer do dia. Enquanto que alguém com compulsão alimentar pode passar muito tempo sem comer e ingerir grandes quantidades de alimentos em pouco tempo apenas pelo impulso de se preencher, às vezes, comendo até passar mal. Isso pode não ter relação com o prazer, escolhendo alimentos que geralmente não procuraria fora da compulsão.
6. A dependência de comida tem cura?
É muito difícil falar em cura de qualquer relação de dependência. O objetivo do tratamento é promover controle do comportamento, com melhores hábitos alimentares e um estilo de vida mais saudável. Nossos trabalhos mostram que a combinação da reeducação alimentar com psicoterapia e o tratamento médico são os mais eficazes.
Podem ser consideradas também políticas públicas regulatórias, assim como foi feito com o tabagismo: aumentar impostos sobre alimentos hipercalóricos e reduzir de alimentos saudáveis; restringir propaganda e acesso a crianças, por exemplo.
7. Como funciona o grupo de dependência de comida do PRO-AMITI?
Depois que os participantes passam pela triagem fazem acompanhamento psiquiátrico paralelamente ao grupo terapêutico. O médico pode prescrever medicação conforme o caso e também tratar de transtornos comórbidos, como ansiedade ou depressão. O grupo terapêutico ocorre de forma semanal, por 15 semanas consecutivas, envolvendo sessões de entrevista motivacional, nutrição comportamental e terapia do esquema, promovido por psicólogas e nutricionistas. Mais de 80% das pessoas que terminam nosso programa de tratamento saem sem mais preencher critérios para DC.
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