Diálogo é essencial para tratar HIV; veja como melhorar relação com médico
O designer gráfico Guilherme Freire, 26, descobriu que estava com HIV durante um exame de rotina em novembro de 2016. Foi um baque na vida do jovem e dezenas de questionamentos surgiram sobre a infecção e como poderia se tratar.
A primeira consulta com um especialista na rede pública onde mora, em Juiz de Fora (MG), aconteceu logo após receber o resultado. A conversa se deu com a médica infectologista que há quase quatro anos o acompanha no tratamento.
É algo que tira o chão da gente. O teste deu positivo e parecia que assistia a um filme e não quis acreditar. Fiquei pensando em como as pessoas poderiam lidar com isso, mas resolvi encarar e buscar o tratamento".
Atualmente, ele está com a carga viral indetectável, o que significa que o HIV não é transmitido por relação sexual.
Para Freire, a conversa com a médica infectologista na primeira consulta amenizou o sofrimento psicológico inicial. Anos depois, ele considera que a atenção profissional recebida no começo do tratamento logo após o diagnóstico e o acolhimento médico ao longo do tempo que vive com HIV se tornaram essenciais para enfrentar o vírus de maneira aberta e pública.
Um dos receios do jovem com o tratamento, por exemplo, era com os efeitos colaterais, como uma eventual lipodistrofia, que é o ganho ou perda assimétrica de gordura em determinas partes do corpo.
"A médica sanou e ainda resolveu todas as dúvidas sobre os medicamentos e efeitos colaterais. Tinha receio porque conversei com um amigo e ele me contou sobre a lipodistrofia. Isso me causou preocupação, mas a médica me tranquilizou explicando que hoje em dia não dava mais este problema e que não precisaria me preocupar. Ela conseguiu me dar bastante calma", recorda.
O relato de Guilherme evidencia parte do que mostra um estudo publicado em agosto deste ano na revista Aids and Behavior, tradicional periódico científico da temática. Nele, foram ouvidas 2.389 pessoas vivendo com HIV em 25 países, sendo 58 no Brasil.
A pesquisa mostra que existe um razoável diálogo entre o paciente e o médico: 62,6% dos entrevistados avaliaram receber informações suficientes para se envolverem no tratamento do HIV, e 59,1% apontaram que seus médicos os informam sobre as novas opções de medicamentos.
Além disso, 62,8% afirmaram que seus pontos de vista sobre o tratamento são levados em conta antes de receberem a prescrição de um remédio.
Um dado considerado negativo chama atenção. O estudo apontou que, pelo fato de os pacientes serem bem informados, 65,1% gostariam se envolver mais nas decisões sobre como tratar o vírus. Em outras palavras, decidir junto com o profissional qual remédio usar.
"Troquei de remédio porque insisti", diz paciente
A ativista e militante Vanessa Campos, 48, é uma paciente com HIV que enfrentou dificuldades em determinadas situações para decidir em conjunto com o médico o melhor tratamento.
Ela descobriu o HIV aos 19 anos, em 1992, ao fazer o exame após seu primeiro namorado morrer por complicações da Aids. À época, tudo sobre o vírus ainda era novo na medicina e não havia tratamento no Brasil. O que estava mais em evidência eram as mortes, sobretudo as das celebridades, como a de Cazuza, em 1990, e de Freddie Mercury, um ano depois, por exemplo.
Vivendo há 30 anos com HIV, Vanessa passou por mais de dez médicos nas cidades por onde morou pelo Brasil. Ela conta que os problemas nos atendimentos aconteceram anos depois de iniciar o tratamento.
Um deles ocorreu em 2011, quando morava em Joinville (SC). O tratamento causava lipodistrofia. Ela já estava com a carga viral indetectável, porém o remédio a deixava sem qualidade de vida. Vanessa sofria com a deformação de partes do corpo, incontinência fecal, colesterol e triglicérides elevados.
"Solicitei a troca, mas a médica dizia que não mudaria porque a carga viral estava indetectável. O que importava para ela era controlar o vírus, sendo que meu corpo estava detonado. Não queria mais tomar aquilo. Insisti muito porque a incontinência fecal me atingia de surpresa. Saía de casa com uma muda de roupa porque não sabia se me atingiria na rua", relata Vanessa, que hoje vive em Manaus, cidade onde nasceu.
A insistência de Vanessa deu certo. A médica mudou o medicamento, mas não informou sobre os efeitos do outro tratamento. "A médica trocou o remédio por outro, mas não me deu a informação de que poderia deixar meus olhos e pele amarelos", frisa a ativista, que depois deste episódio passou a procurar cada vez mais informações sobre a infecção.
Desde 2016, Vanessa faz parte da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids (RNP+BRASIL), e acolhe pessoas que também enfrentam o mesmo problema com os médicos.
É muito complicado convencer os médicos de que é realmente o remédio o causador destas situações (...) Até hoje, mulheres que querem engravidar chegam comigo e dizem que não podem ter relações sexuais sem preservativo mesmo estando com carga viral indetectável, o que não é verdade. Isso acontece porque os médicos não informam".
As barreiras entre pacientes e médicos
O drama da limitação da vida apontado por Vanessa parece ser uma realidade de quase um terço das pessoas que vivem com HIV. O estudo que investigou 2.389 pacientes em 25 países revelou que o tratamento escolhido pelo médico restringia a qualidade de vida de 28,9% das pessoas. Desses, 63,7% comentaram sobre isso com o médico.
Já entre os que decidiram não relatar os efeitos colaterais, as principais causas para permanecerem calados são: o desespero por acreditar que nada poderia ser feito (49,3%), a falta de iniciativa do médico em perguntar sobre as reações aos medicamentos (37,9%) e o medo de ser rotulado como um "paciente difícil" (30,5%).
A pesquisa ainda constatou outro problema na relação entre médicos e pacientes. De todos os participantes, 53,2% alguma vez na vida já sentiram o desejo de mudar o tratamento, mas desses, 23,9% nunca dividiram o problema com o médico. Outros 27,4% externaram a vontade, mas não tiveram o pedido atendido, causando certa frustração no tratamento.
"O envolvimento de boa qualidade do paciente com o médico foi associado a melhores resultados relacionados à saúde. Uma proporção substancial de pacientes não relatou um bom envolvimento e isso associa-se a resultados piores relacionados à saúde", acentua o estudo.
Os pesquisadores sugerem que o médico seja o principal responsável por tomar iniciativa de avançar no diálogo em busca da melhoria no tratamento. "Os médicos devem buscar ativamente maneiras de aumentar o envolvimento com seus pacientes, incluindo a tomada de decisões conjuntas e garantindo que as prioridades dos pacientes também sejam discutidas nas consultas para alcançar melhores resultados de saúde", conclui a pesquisa.
Já outro estudo, realizado em um hospital público de Goiânia, com quatro médicos e quatro pacientes, mostra um dado positivo: os profissionais se preocupam em fornecer explicações aos pacientes sobre exames ou efeitos da infecção.
Contudo, os médicos analisados apresentavam comportamentos não-verbais inadequados para aderência ao tratamento e que deixasse os pacientes mais confortáveis, como deixar de sorrir ou de balançar a cabeça em afirmação a alguma declaração durante a consulta.
"Cabe ao médico explicar ao paciente os comportamentos necessários, as consequências da não-adesão, e os benefícios da terapia", aponta o estudo.
Tema ainda é tabu para médicos?
Felipe Perini, pesquisador e médico infectologista, atua com pacientes que vivem com HIV em Florianópolis. É a capital que em 2019 obteve a maior taxa de novos detectáveis por grupo de 100 mil habitantes, conforme o último boletim epidemiológico anual do Ministério da Saúde.
O profissional conta que a promoção do diálogo entre o médico e o paciente com HIV ainda parece ser um tabu que precisa ser quebrado na classe.
É algo não debatido na faculdade. O próprio profissional deve aprender e refletir sobre como tornar o ambiente mais agradável, pois o paciente percebe se é julgado sobre seus atos".
"Temos um lapso na formação médica sobre a abordagem, além de uma luta cultural sobre o estigma que permeia o profissional e alguns pacientes. Quem trabalha com pessoas vivendo com HIV tem que se livrar de estigmas, caso contrário deve procurar outro emprego", critica.
A infectologista Cassandra Mangabeira, da rede pública de Roraima, concorda. O estado onde atua liderou em 2019 com a maior taxa de novos pacientes com HIV, o que para a médica pode ter influência por causa da recente onda migratória venezuelana.
"O diálogo é fundamental porque esses pacientes procuram a gente extremamente abalados, tristes e muitos até em pânico, com quadro de depressão. Costumo dizer para todos os colegas que é importante trabalhar naquilo que você gosta. Se tem algo que priorizo é o diálogo com meus pacientes", acentua Cassandra, que atende há 25 anos pacientes com HIV.
A importância do contato inicial
Médicos ouvidos por VivaBem convergem ao apontarem que a primeira consulta é um dos principais momentos para abertura do diálogo entre o profissional de saúde e a pessoa vivendo com HIV.
Felipe Perini sugere que os profissionais busquem logo no início mudar um eventual preconceito que possa rondar a cabeça do próprio paciente. "O HIV, às vezes, é transformado em uma doença do pecado e logo na conversa inicial devemos procurar desconstruir este estigma, principalmente o autoestigma. A pessoa se expôs ao vírus e pode estar se culpando", sugere.
Perini ainda considera que o próprio ambiente físico potencializa a melhoria da conversa com o paciente, somado até às próprias palavras a serem usadas durante a consulta. "Uma estratégia é demonstrar que aquele espaço é protegido e profissional, não usando frases heteronormativas. Algo prático também é colocar no consultório algo que sinalize a diversidade e que mostre à pessoa que é possível se abrir para uma conversa", aconselha.
Herbert Cordeiro, médico infectologista e professor de medicina da Unifamaz (Centro Universitário Metropolitano da Amazônia), atende pessoas que vivem com HIV em Belém. Ele também considera a primeira consulta como essencial. Para ele, é o momento para desmistificar questões sobre a infecção.
O médico precisa mostrar que a pessoa que vive com HIV tem uma condição que não a coloca como um doente. Não existe sonho nenhum bloqueado pelo HIV. Se a pessoa quiser filhos, casar, viajar ou estudar, nada disso será afetado. Se for explicado, o tratamento tem grande chance de ser aderido e seguido".
O encontro inicial, aliás, é colocado por Cordeiro como o momento de não buscar se aprofundar na intimidade do paciente. Isso seria mais prudente ao longo do tempo.
"O médico deve dosar até que ponto deve perguntar sobre a intimidade do paciente na primeira consulta porque a pessoa se sente muito culpada naquele momento. Invadir a intimidade é mais adequado posteriormente, quando houver uma relação fortalecida. Na primeira consulta, o fundamental é explicar e tirar todas as dúvidas", diz o médico coautor do livro "Manual para o médico que atende população que vive com HIV/Aids", publicado em 2020.
Até o próprio astral do médico deve ser considerado na condução de uma consulta, comenta a infectologista Cassandra Mangabeira, que ainda avalia ser essencial o próprio profissional tomar a iniciativa da conversa.
"A pior coisa que existe é o paciente chegar ao consultório e se deparar com um médico mal-humorado que nem olha para ele e não procura conversar. Isso coloca o paciente mais para baixo ainda", conta a experiente médica.
Se o diálogo não for aberto entre o médico e o paciente, Cassandra diz que existe grande chance de a pessoa com HIV não retornar às consultas ou até mesmo desistir do tratamento. "Trato as pessoas que atendo como meus amigos, assim é difícil um efeito colateral não ser relatado", finaliza.
Dicas para melhorar a relação médico-paciente
VivaBem listou dicas apontadas pelos infectologistas ouvidos sobre como os profissionais de saúde e as pessoas que vivem com HIV podem avançar na relação entre si a fim de melhorar o tratamento.
Aos médicos
- Ter disposição para esclarecer todas as dúvidas de imediato
- Mostrar à pessoa com HIV que ela terá uma vida normal se seguir o tratamento
- Incentivar as práticas saudáveis e aderência imediata aos antirretrovirais
- Não tornar o paciente culpado pelo diagnóstico e quebrar estigmas sobre a infecção
- Indagar sobre eventuais efeitos colaterais, mesmo que o paciente não os relate
Aos pacientes
- Não ter medo de perguntar sobre qualquer dúvida quanto ao HIV e o tratamento
- Dividir com o médico eventuais efeitos colaterais dos medicamentos
- Acreditar que o médico é a melhor fonte sobre o seu tratamento especificamente
- Compartilhar possíveis problemas de comorbidades, mesmo que o médico não pergunte
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