Luto e dor invisíveis: como o estupro afeta a saúde mental das vítimas
Resumo da notícia
- Qualquer ato libidinoso sem consentimento, seja a vítima homem ou mulher, é um estupro
- Vítimas podem sentir vergonha e culpa ou dificuldade de identificar o abuso
- Sintomas após violência podem se agravar para transtorno de estresse pós-traumático, transtornos alimentares e sexuais, fobia, depressão ou ansiedade
- Tratamento varia, mas uma alternativa comum é a terapia de ressignificação de trauma, que promove regulação emocional e elimina a sensação de culpa
"Minha alegria, independência, vontade de viver e estilo de vida foram ceifados naquela noite. Eu fiquei depressiva, irritada, autodepreciativa e cansada. O isolamento [que sinto] às vezes é insuportável", desabafou ano passado, em uma postagem no Instagram, a influencer Mariana Ferrer. Ela descreve o trauma que passou após um estupro, que a jovem conta que ocorreu em dezembro de 2018.
O abusador, segundo ela, foi o empresário André de Camargo Aranha, que a estuprou durante uma festa em um beach club de Florianópolis (SC). Ele foi absolvido pela Justiça em setembro e o episódio causou indignação nas redes sociais, principalmente após a publicação do vídeo de um trecho da audiência do caso, no último dia 3 de novembro, pelo site The Intercept Brasil.
A filmagem, que mais tarde foi liberada na íntegra, mostra o advogado do réu, Cláudio Gastão da Rosa Filho, exibindo fotos de Ferrer, de quando ela era modelo profissional, e as definindo como "ginecológicas". A influencer pede respeito, chora e reclama do interrogatório para o juiz.
O episódio preocupa tanto advogados como profissionais da saúde, já que um tratamento desqualificado para com as vítimas de violência sexual pode agravar problemas psicológicos —que, naturalmente, já são recorrentes em sobreviventes de estupro.
Em 23,3% das vezes, as vítimas são diagnosticadas com estresse pós-traumático, de acordo com o Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação). Isso fora os casos de depressão, fobia, e ansiedade. Tanto que o Ministério da Saúde reconhece a violência sexual, de modo geral, como questão de saúde pública.
O que pode ser considerado estupro?
De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, um estupro ocorre no Brasil a cada 8 minutos. Esse crime, segundo o artigo 213 do Código Penal Brasileiro, se caracteriza por "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso".
Portanto, para que um estupro ocorra, não é preciso necessariamente penetração vaginal (a citada "conjunção carnal"). Ou seja: um "ficante" tentou enfiar a mão em suas partes íntimas depois de você dizer que não queria? Isso é estupro. Você estava dormindo e o seu marido colocou os dedos na sua vagina? Também é estupro.
Qualquer ato libidinoso sem consentimento, seja a vítima homem ou mulher, é um estupro e o abusador pode levar, no mínimo, de seis a 10 anos de prisão. E um estupro também ocorre durante o ato sexual: tirar a camisinha da parceira (o) sem permissão (o chamado "stealthing") também se aplica no artigo 213, e juristas interpretam o ato como ação criminosa hedionda.
Estupro de vulnerável: quando a vítima não responde por si
A advogada Camila Martins explica que esse tipo de estupro está previsto no artigo 217A e ocorre quando a vítima é menor de 14 anos. Ou ainda se enquadra em situações nas quais a pessoa tem alguma enfermidade ou "qualquer outra causa pela qual ela não possa oferecer resistência, como estar embriagada ou dopada".
A pena prevista para essa situação é de oito a 15 anos, mas varia segundo o caso. "O que vai haver é um aumento de pena pelo abusador ser da mesma família ou ser cônjuge, pai, mãe, tio ou de alguma forma exercer poder de controle sob a vítima", explica Martins, que é especialista em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito de Coimbra, de Portugal.
Mas especificamente quando é uma criança que sofre um estupro cometido por um membro da família, a psicóloga e sexóloga Sheila Reis conta que isso compromete a noção de confiança dela, além de danificar o desenvolvimento natural da sexualidade, pois o estuprador introduz uma "visão adulta" de modo precoce na memória da vítima.
"Existem clientes meus que só vão lembrar [mais para frente] na terapia que houve o estupro na infância. Na adolescência, eles começam a se sentir culpados. Isso traz uma carga, mistura sexualidade com sujeira, com coisa feia. E atrapalha relacionamentos futuros por conta da falta de confiança que se vai depositar no parceiro", explica Reis, que é presidente da Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana.
Prova do trauma duradouro citado pela psicóloga é a história de Esmínia Portman, 26, que sofreu estupro aos sete anos de idade e até hoje tem pesadelos e insônia. Por conta do abuso, ela também teve depressão na adolescência, tentou suicídio e ficou em coma.
Depois de quase morrer, procurou ajuda psicológica, já tendo atualmente passado por cinco psicólogas diferentes. "Nós vítimas [de estupro] temos isso no nosso coração. Que ninguém ama a gente, que ninguém quer ficar perto da gente. Eu tento mudar esse contexto na minha cabeça, mas às vezes não dá para tirar isso, não dá".
A jovem narra o ato de violência sexual que deixou nela essas sequelas emocionais, assim como outros episódios —nos quais passou fome e foi obrigada a se prostituir para alimentar seu filho — no livro O Valor da Âncora: Fatos Reais (Autografia Editora), lançado em outubro deste ano. O estupro que afetou a saúde mental da vítima ocorreu quando ela ia a pedido da mãe em uma loja perto de casa comprar um refrigerante. Quando virou a esquina, um desconhecido na rua a convenceu a ir mais tarde ajudá-lo a segurar uma escada dentro da casa dele, prometendo que lhe daria uma boneca em troca.
O estuprador a acompanhou dentro do local e a trancou em um quarto, até que a menina começou a chorar. "Ele puxou meu cabelo para trás e falou que se eu falasse para alguém ele iria matar a mim e a minha família", lembra Portman.
Por ter sofrido ameaça, a jovem explica que demorou 19 anos para falar sobre a agressão. Ela também evita passar em ruas nas quais acredita que o estuprador possa estar. "Aquele gosto da boca dele, aquele cheiro, é uma coisa muito ruim. Até hoje eu sinto o gosto da saliva dele, aquela coisa não sai", desabafa.
Estupro marital: quando se convive com o estuprador
O estuprador pode ser o próprio marido, namorado ou parceiro da vítima. Nesses casos, é ainda mais difícil reconhecer o abuso ou aceitá-lo. "Você não está afim, às vezes nem gosta mais daquele parceiro tanto assim, mas se vê obrigada a ter uma relação sexual com ele, pois ele te agride. Existe uma questão social de que [satisfazer o outro com sexo] é obrigação da mulher. Isso acabou na lei, mas não na cultura, que ainda permeia isso", comenta a psicóloga Sheila Reis.
Na justiça, até 2005, por mais incrível que pareça, se uma mulher casasse com um estuprador, ele não seria punido. "A gente tem um Código Penal que é originalmente do ano de 1940. Talvez para a sociedade da época fazia sentido esse tipo de disposição, mas hoje não faz mais", explica a advogada Camila Martins.
Todavia, o conceito de estupro marital não abrange apenas ao marido, mas também qualquer outro parceiro. Anna Cláudia Pereira, 30, por exemplo, foi violada por um namorado quando tinha em torno de 20 anos.
Na ocasião, ela saía de toalha do banho; ele a jogou na cama e insistiu que "queria sexo". "Eu falei não várias e várias vezes. Eu lembro que fiquei imóvel e só pensava 'acaba logo'. As lágrimas saíam dos meus olhos sem eu fazer força nenhuma. Eu só sentia elas saindo", recorda a moça.
Pereira ficou no momento posterior ao abuso muito transtornada, mas continuou o relacionamento depois do ocorrido. "Eu não entendia que tinha sido estuprada. Não foi algo que fiquei traumatizada pensando nisso depois. Porém, depois de muitos anos, eu contei para um amigo meu e ele falou 'Anna, você foi estuprada, isso é estupro' e foi caindo a minha ficha", explica.
Ela salienta que "não teve trauma psicológico", mas que na época "não tinha acesso à informação sobre a cultura do estupro". A avó dela, inclusive, apanhava do marido quando ele "queria sexo". E outra mulher da família dela, que tinha acabado de dar à luz um bebê, foi estuprada pelo cônjuge, que arrebentou os pontos cirúrgicos de uma cesária recente.
Dificuldade em reconhecer o estupro
Como a cultura do estupro é enraizada ao longo das gerações, muitas vítimas como Pereira demoram para identificá-lo. Isso porque, dependendo de tal aspecto cultural ou da rede de apoio, isso causa sensação de "dano minimizado" na vítima.
Pode haver ainda maior dificuldade de se lidar com o trauma, de acordo com Sandra Scivoletto, professora de psiquiatria da infância e adolescência na FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
Também existem algumas situações, segundo a psiquiatra, nas quais, por essas diversas razões estruturais, a mulher estuprada interpreta a violação sexual dentro de um "limite muito tênue". "Por isso é difícil até para a própria vítima identificar que aquilo foi uma agressão", afirma Scivoletto.
Um caso de estupro no qual, por exemplo, pode ocorrer uma dificuldade de interpretação da própria vítima é a chamada violação sexual mediante fraude. Ela se dá quando o abusador usa de um engano para impor o abuso. Isso ocorre em contextos religiosos (nos quais padres ou gurus justificam crimes sexuais pela religião) ou em episódios de vulnerabilidade profissional, quando, vamos supor, um médico é o agressor e pede à paciente para que ela fique nua para "ajudar na cura" —quando, na verdade, essa é uma narrativa enganosa para cometer o estupro.
Negação
Além de o contexto poder confundir a vítima, ela pode ter ainda mais dificuldade de reconhecer a violência devido ao mecanismo psicológico da negação, que é uma forma de defesa. Esse é mais recorrente quando o agressor é uma pessoa na qual se confiava, pois costuma ser mais difícil perceber que alguém amado não respeita você.
O mecanismo defensivo da negação opera também quando o cérebro "repassa" o evento traumático na memória. "Isso é importante, pois se o estupro acontecer outra vez, a pessoa crê que tem mecanismo de controle para tentar evitá-lo [mesmo sendo algo inevitável]", explica Scivoletto. "Por outro lado, a vítima pode se sentir culpada, como se de alguma forma pensasse 'eu provoquei', 'eu fiz por merecer, logo, posso evitar [ser agredida]'".
Problemas de saúde mental acarretados pelo estupro
Não existe um diagnóstico específico que é mais comum, mas logo após a violência sexual o que ocorre com frequência são sintomas de reação aguda ao estresse, como hipervigilância, dificuldade de relaxar, insônia e medo constante. E, principalmente se a vítima não recebe apoio, não realiza tratamento ou é desqualificada, os sintomas podem se intensificar, gerando consequências como:
- rotina disfuncional
- falta de confiança generalizada na hora de criar vínculos afetivos
- baixa autoestima
- isolamento e retraimento, dificultando falar sobre o trauma
- sensação de culpa e vergonha intensificadas
- impacto emocional no sistema de alerta, gerando dor física
Por fim, o quadro pode evoluir ainda para transtorno de estresse pós-traumático, fobia, transtornos alimentares, distúrbios sexuais, depressão ou ansiedade. Esses últimos dois diagnósticos, inclusive, afetaram Josely Mendes, 19, depois que ela sofreu um estupro, tendo como agressor seu primo casado de 30 anos de idade.
O abusador encostou nas partes íntimas dela sem consentimento e a beijou no pescoço, quando ela tinha apenas 15 anos. O trauma não a deixou mais à vontade na presença masculina por um bom tempo e causou confusões na sexualidade da jovem, que buscou ajuda psicológica.
A jovem, que é fiel da Assembleia de Deus Pioneira, conta que teve também apoio da fé, mas nem o ambiente religioso ou as escolas públicas que ela frequentava a orientaram em termos de educação sexual. Tanto que, por não ter havido penetração, a garota não havia identificado o que sofreu como um estupro.
"Eu tinha [na época] dúvidas se gostava de homens ou mulheres. Confusa, optei por não me relacionar sexualmente", conta Mendes que, por motivos religiosos, escolheu manter-se virgem até o casamento, embora diga que o estupro também pesou nessa decisão.
Terapia especializada
O tratamento para pessoas que passaram por estupro varia muito, principalmente se o caso se agravar, mas geralmente começa com terapia de ressignificação de trauma. Ela ajuda a criar mecanismos de regulação emocional, evitando ansiedade e estresse e promovendo resiliência. Mas auxilia também a pessoa a não culpar mais a si mesma.
A culpa, de acordo com a psiquiatra Sandra Scivoletto, é uma "tentativa do cérebro de retirar a pessoa da situação de vulnerabilidade", dando sensação de controle sobre o estupro, embora a violência seja incontrolável. Portanto, a terapia tenta reverter o pensamento negativo da vítima, de que a agressão era "evitável", já que a culpa seria dela.
É importante evitar esse ciclo vicioso de pensamentos tóxicos, mas Scivoletto explica que a vítima muitas vezes prefere o silêncio. Só que, ainda assim, o recomendado é que pessoas próximas ou o próprio terapeuta ofereçam ajuda, "deixando a porta aberta", e não obrigando ninguém a se abrir à força, para não "vitimizar de novo" a pessoa atingida.
A psicóloga Sheila Reis concorda com a psiquiatra na necessidade de oferecer um espaço de ajuda. "A vítima precisa desabafar, colocar pra fora e passar por esse luto. É um luto, pois na maioria dos casos você confia em alguém e perde essa pessoa que você confiava. Ou você não confia mais na humanidade, enquanto você tem que entender que não é responsável por isso, que não é responsável pela má-fé do outro", resume Reis.
Como proceder em caso de estupro
Se você foi vítima de um estupro, acione o telefone da Polícia Militar (190) ou ligue para a Central de Atendimento à Mulher (180). Se for possível, vá até uma delegacia, dando preferência para uma Delegacia da Mulher para registrar um boletim de ocorrência.
Vale lembrar que a autoridade policial não pode negar o registro da ocorrência. Caso você seja dissuadida (o) de fazer o boletim, registre uma reclamação na ouvidoria do órgão em que ocorreu a recusa. Não tendo sucesso, procure o Ministério Público local.
Com a queixa registrada, você será encaminhada (o) para um órgão de saúde para exames de detecção de infecções sexualmente transmissíveis. É preciso fazer o procedimento em até 72 horas para que funcionem medicamentos antirretrovirais (como para a prevenção do HIV).
Por último, o encaminhamento é para o IML (Instituto Médico Legal), onde é feito um exame de corpo de delito.
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