Médicos alertam: pandemia não pode ser motivo de parar o tratamento de HIV
Um ano da pandemia de coronavírus no Brasil, mais de 300 mil mortes e recordes negativos batidos diariamente. Claro que o cenário é desafiador para todos, mas parece ser ainda maior para as pessoas vivendo com HIV (PVHIV) e que precisam manter o tratamento em dia para evitar complicações.
O tratamento de HIV demanda uma continuidade, por isso é fundamental que o paciente consiga se apropriar e se engajar. A partir do momento que ele toma os antirretrovirais de forma regular é esperado um controle da infecção dentro de seis meses.
"Caso ele não tome a medicação regularmente, existe o risco de o vírus do HIV desenvolver mecanismos para escapar desses antirretrovirais e, com isso, surgirem os problemas", afirma Bruno Ishigami, infectologista da Clínica do Homem no Recife pela AHF Brasil (Aids Healthcare Foundation), organização global que atua na prevenção, diagnóstico e tratamento de HIV/Aids.
Em 2019, 28.912 pessoas vivendo com HIV, elegíveis para a terapia antirretroviral (TARV), iniciaram tratamento em até um mês após a realização do primeiro CD4 (células que mostram o nível de comprometimento da imunidade por causa do HIV). Em 2020, esse número baixou para 11.381.
Já para as pessoas vivendo com HIV elegíveis para TARV, por ano de primeiro CD4 realizado, o número foi de 50.838, em 2019; e 18.866 em 2020. Esse levantamento, realizado até 30 de junho de 2020, faz parte dos indicadores e dados básicos de monitoramento clínico de HIV do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.
Interromper tratamento é perigoso
A meta do tratamento é manter a supressão viral, ou seja, carga viral indetectável. "Se houver interrupção do tratamento, haverá falha, o vírus se multiplicará, a doença evoluirá e pode haver a transmissão para outra pessoa. Se a carga viral estiver sempre indetectável essa transmissão não ocorrerá", explica Miralba Freire, infectologista, diretora do CEDAP (Centro Estadual Especializado em Diagnóstico, Assistência e Pesquisa), que é o Centro de Referência para Tratamento de IST/HIV/Aids no âmbito da Secretaria da Saúde da Bahia.
Parte fundamental da assistência a esses pacientes, a distribuição das medicações sofreu algumas alterações devido à covid-19. Os serviços de saúde dispensaram medicamentos para um período maior de tempo e também revalidaram receitas anteriores para evitar as idas aos postos, facilitar o acesso e diminuir os riscos de contaminação, segundo explica José Valdez Ramalho Madruga, infectologista, consultor da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia) e pesquisador da Casa da Pesquisa do Centro de Referência e Treinamento - DST/Aids, de São Paulo.
Quando o estado recebe estoque de remédio suficiente, a distribuição é feita por períodos maiores, três meses, por exemplo. Mas se ainda assim o paciente tiver dificuldades para buscar a medicação, ele pode autorizar que outra pessoa retire na unidade.
"O importante é que não haja a interrupção em função da pandemia, deve-se adequar a conduta e garantir o tratamento contínuo", reforça Miralba Freire, que também é docente na Faculdade de Medicina da UFBA (Universidade Federal da Bahia).
Algumas atividades de suporte, como encontros, foram suspensas por causa do isolamento social, mas outras passaram a ocorrer à distância, como as consultas online —as presenciais estão mantidas— e o atendimento por telefone para orientações e dúvidas. Todas essas ações visam dar assistência e ajudar na adesão ao tratamento, acrescenta Freire.
Balanço do primeiro ano
Para Madruga, o primeiro ano da pandemia foi difícil no Brasil. "Atualmente, estamos observando grande número de casos de covid nos portadores de infecção HIV, inclusive com formas mais graves e que necessitam de internação hospitalar. Chegamos a acreditar que os medicamentos antirretrovirais usados no tratamento do HIV pudessem ter efeito protetor para evitar infecção pela covid, mas o tempo e os estudos mostraram que este efeito protetor não existe. As pessoas que vivem com HIV são mais propensas a apresentar diabetes, hipertensão arterial, doenças cardiovasculares e estas comorbidades estão relacionadas com maior risco do coronavírus, inclusive com maior gravidade da doença", diz.
Ele ainda acrescenta que é importante que as PVHIV conversem com seus médicos e não tomem medicamentos ineficazes e que tem efeitos colaterais. "O famoso 'kit de tratamento precoce' pode ter consequências mais graves nos portadores de HIV", alerta.
Em 2019 e 2020, a maior preocupação do infectologista Ishigami em relação às PVHIV tem sido com os pacientes que vivem em situação de maior vulnerabilidade social.
"Acredito que o maior desafio é que essas pessoas que não têm uma rede de apoio tão estabelecida, abandonem o tratamento por dificuldade de acesso ou de motivação para mantê-lo. Para aqueles com rede de apoio bem estabelecida fico um pouco mais tranquilo, acredito que o SUS e a rede de atendimento ao HIV têm se saído bem ao longo desse ano, principalmente para as pessoas que já estão fazendo tratamento há algum tempo", afirma.
A supressão viral entre pessoas com HIV foi de 437.713 em 2019; e 243.466, em 2020, de acordo com os indicadores e monitoramento clínico de HIV do Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde.
"Houve uma grande redução no número de indivíduos com supressão virológica em 2020. Não temos certeza se realmente aconteceu uma diminuição tão grande ou se isso é reflexo dos pacientes não terem feitos exames de controle", analisa o consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Ele explica que o governo exige resultado de carga viral com menos de seis meses para ter este controle da efetividade da terapia, mas no último ano as unidades dispensadoras flexibilizaram esta exigência por causa da pandemia. "Certamente, também temos uma parcela de indivíduos que abandonaram o tratamento e isso pode ter consequências desastrosas".
A mensagem final do médico para esses pacientes é: "Não interrompa o seu tratamento, você pode ter problemas graves de saúde. Mas se você interrompeu, procure retomar o quanto antes para evitar esses problemas. Não quero assustar ninguém, mas já vi vários pacientes que tiveram infecções graves ou até mesmo morte porque suspenderam o tratamento. Muitas vezes essas infecções podem deixar sequelas irreversíveis".
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