Surfista e de bem com a vida, homem aguarda 4º transplante de fígado em SC
Marcelo Siqueira, 56, conhecido como Moscão, surfista e dono de uma pousada em Santa Catarina, tem travado uma batalha pela vida nos últimos anos. Ele já foi submetido a três transplantes de fígado desde 2019 e agora está à espera do quarto. Moscão está confiante e mantém o pensamento positivo, com o desejo de voltar ao mar e fazer o que mais gosta: surfar. Hoje mora com a família em Blumenau, cidade que é referência em transplantes.
No dia 13 de junho de 2021, ao realizar o quarto transplante, Moscão não aguentou o procedimento e morreu.
"Nasci em Florianópolis, mas moro na Praia da Pinheira [no município de Palhoça] há uns 25 anos, onde tenho uma pousada há 5. Pego onda desde os 12 anos e, se Deus quiser, não quero parar tão cedo. Sinto uma saudade danada do mar.
Em novembro de 2018, estava pintando o telhado da pousada e comecei a me sentir um pouco estufado. Alguns médicos diziam que era gases. E, depois de muita insistência, uma médica resolveu fazer uma tomografia computadorizada, que constatou que o problema era no fígado.
Fiquei internado quatro meses em Florianópolis. Fui muito bem tratado lá, mas não ia para a fila do transplante. Até que uma comissão de médicos avaliou meu caso e um deles chegou até mim: 'Olha, não tem mais jeito: ou você faz o transplante ou você pode morrer a qualquer hora'. Falei com a minha família e nos questionamos porque não ia à fila de espera.
O Guilherme é um amigo que faz pranchas. E, nessas horas, acredito que há algo, tem Deus. Uma pessoa foi lá comprar uma dele. Eles falaram sobre a prancha e chegou outro amigo, perguntando por mim: 'Cadê o Moscão? Ele vai morrer...'.
Aí, os dois se abraçaram e choraram. O comprador ficou só escutando e resolveu perguntar: 'O que ele tem?' O Guilherme falou tudo. E então essa pessoa se identificou: 'Sou médico, trabalho na área de transplantes e vou ajudá-lo'.
O doutor pediu um monte de coisas e analisou tudo. Tempos depois, consegui, após muita insistência, uma transferência para Blumenau, para fazer uma consulta. Estava tão ruim que não deu tempo de fazê-la, já fui direto para a maca, estava muito debilitado. Era o momento de fazer o transplante.
No dia 10 de março de 2019 recebi o órgão de um 'gurizão' de 18 anos. Estava tão mal que o fígado não funcionou. Tinha poucas horas para conseguir outro transplante ou eu ia morrer.
Deram de 4 a 8 horas [de vida], sobrevivi, com uma porção de medicamentos. No outro dia, às 5h, me chamaram de novo. Um novo fígado, de um homem de 54 anos, que era minha idade na época. Me surpreendi. Foi muito rápido, me recuperei e voltei a ter uma vida normal.
Depois de um preparo, lá por agosto, peguei a prancha e fui para dentro da água. Surfar. Estava me sentindo um iniciante. Começando tudo de novo. Quando você está na prancha, teu espírito é outro, tua alma é outra. Estava no paraíso.
Ainda fazia uns exames de rotina em Blumenau. Na última, no fim de 2020, começou a me dar umas dores e os médicos falaram que as minhas veias estavam ruins. Ainda estava normal e eles, sabendo do risco, perguntaram o que eu queria da vida: 'Olha, eu quero é viver e o que vocês optarem, estou pronto'. A equipe decidiu por um novo transplante.
Me mudei para Blumenau e, no dia 24 de fevereiro de 2021, fiz o terceiro. Estava legal, mas peguei uma 'bacteriazinha' bem destruidora. Tive que tomar muito antibiótico. E ainda peguei covid-19.
Uma infecção hospitalar desencadeou uma nova trombose da artéria hepática e a necessidade do quarto transplante.
Isso não me abateu, estive sempre com a autoestima elevada. Tive um período forte de febre e agora parou. Fico com o telefone 24 horas ligado, esperando pela ligação do hospital, pois sou o segundo da fila.
Depois que passar pelo quarto transplante, quero pegar uma onda com o doutor que foi lá comprar a prancha. É uma promessa nossa. Vou voltar para a água, vou ter a minha atividade. Ter uma vida como sempre tive.
Se isso tudo acontece na vida da gente, é porque tem um propósito. Se Deus colocou isso aí para a gente ter que enfrentar, estou encarando. E sempre agradecendo às famílias que doam, pois perder um ente é muito difícil.
Mas perder e poder ajudar outra família para ter possibilidade de continuar uma vida? Cara, não tem preço. São quatro famílias que estão me dando essa oportunidade de estar vivo, de estar feliz, para encarar tudo de novo e vou encarar, mas nunca vou esquecer destas pessoas.
Por que Marcelo está indo para o quarto transplante?
Não há uma única explicação. O primeiro, em 10 de março de 2019, foi por conta de uma cirrose em decorrência da hepatite C.
"Esta condição era a principal causa de cirrose e indicação de transplante. Hoje está diminuindo bastante, pois tem um novo tratamento para o vírus, que cura 95% dos pacientes. A tendência é a hepatite C diminuir bastante e a longo prazo desaparecer", afirma José Huygens Parente Garcia, presidente da ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos) e chefe do serviço de transplante de fígado do Hospital Universitário e do Hospital São Carlos, em Fortaleza.
O segundo, dois dias após o primeiro, ocorreu devido a uma trombose de artéria hepática, que faz com que o fígado transplantado não receba o fluxo sanguíneo de modo adequado. Essa condição se torna prioridade na fila do transplante. O procedimento teve um grau elevado de risco.
"Surpreendentemente, o fígado funcionou logo nas primeiras horas. Em 24 horas, o Marcelo já estava acordado. Foi uma progressão que a gente não acreditava", relembra Maíra de Godoy, chefe do Setor de Transplante Hepático do Hospital Santa Isabel, de Blumenau.
No fim de 2020, ele teve ascite, que é o acúmulo anormal de água na barriga. A doença tem várias causas, mas no caso de Marcelo foi por conta do fígado. Foi constatado um estreitamento na veia cava, complicação relacionada ao segundo transplante, sendo necessária a realização do terceiro, feito em fevereiro.
Uma infecção hospitalar, porém, junto com outras complicações, desencadearam uma nova trombose da artéria hepática. Desde então, Marcelo aguarda pelo quarto transplante.
Todavia, entre o fim de março e o começo de abril foi diagnosticado com covid-19, retardando a realização do procedimento, que deve ser feito nos próximos dias, se houver doador compatível.
Há um limite de transplantes?
Não há um limite de transplantes de fígado no corpo humano, segundo os especialistas. "O limite vai depender das condições dos pacientes. Não há uma predefinição, mas, claro, os transplantes, à medida que vão sendo realizados, vão tendo um grau de dificuldade maior, grau de risco também", ressalta Huygens.
Também contribuem para o sucesso dos retransplantes a idade, a prática de atividades físicas, além do fato de não ter nenhuma doença associada, como pressão alta e diabetes, por exemplo.
Huygens frisa que, no caso do Marcelo, os transplantes não foram por rejeição do fígado e, sim, por problemas vasculares. Rejeições podem acontecer, mas atingem menos de 5% dos pacientes.
O Brasil, segundo a ABTO, realizou no ano passado, 2.050 transplantes de fígado. "Cerca de 90% dos pacientes estão maravilhosamente bem após o primeiro transplante. Até 10% deles, em 10 anos, podem precisar de um novo fígado", conclui Huygens.
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