HIV em crianças tende a desaparecer, mas não faltam desafios
O número de crianças menores de 13 anos infectadas por HIV diminuiu 47,2% em dez anos, de acordo com o Boletim Epidemiológico HIV/Aids, de 2020, do Ministério da Saúde. Em 2019, havia 1,9 casos em cada 100 mil pessoas, contra 3,6 em 2009. Embora o panorama seja positivo, o objetivo é reduzir as estatísticas até zerá-las.
Há vários desafios no caminho e, assim como em um jogo de videogame, a abordagem durante a infecção por HIV nesta faixa etária muda de fase conforme o paciente cresce. Questões como diagnóstico, carga viral, formulações medicamentosas específicas, adesão ao tratamento e sexualidade precisam ser bem trabalhadas em curto espaço de tempo.
Transmissão vertical pode ser em três momentos
Para começar, em 88,8% das vezes, crianças são infectadas via transmissão vertical (da mãe para o filho), que pode ocorrer em três momentos: na gestação, no parto e durante o aleitamento.
"Percebo um aumento de histórias de mulheres que não tinham histórico da doença, mas são contaminadas pelos parceiros e transmitem para o bebê ao amamentar", destaca Maria Fernanda Badue Pereira, médica assistente da unidade de infectologia pediátrica do Instituto da Criança e do Adolescente da HC-FMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).
Alexandre Janot Mayor, médico do Serviço de Assistência Especializada em HIV/Aids Henfil, de Palmas (TO), explica que, no início da infecção pelo HIV, a carga viral é alta, o que aumenta o risco dessa transmissão. "Também defendo o uso da camisinha durante a gestação, pois já tive um caso de infecção no final da gravidez. E o ideal é o testar o pai também, pois eles vão manter contato sexual", diz.
Nos 11,2% dos casos contaminados por transmissão horizontal, a maior parte se dá por motivos ignorados. "A maioria dentro desse universo, de 5% a 6%, é por abuso sexual ou contaminação intravenosa (transfusão de sangue e uso de drogas)", esclarece Sônia Maria de Faria, chefe do Serviço de Infectologia Pediátrica do Hospital Infantil Joana de Gusmão, referência na Grande Florianópolis (SC) para atendimento de crianças e adolescentes expostos ao HIV.
Casos cada vez mais raros
Na maioria das vezes, em gestantes diagnosticadas no pré-natal e que começam o tratamento com antirretrovirais ou que sabem ser portadoras do HIV e também já usam tais medicamentos, as chances de transmissão para o filho são baixas, em torno de 1%, segundo a médica infectologista pediatra.
Mayor explica que não é realizado exame para diagnóstico antes do nascimento nem testes rápido ou sorológico no recém-nascido. O exame é feito a partir dos 2 meses de vida.
"São situações cada vez mais raras, mas pode ter havido falhas na cadeia de pré-natal e o bebê ser infectado, podendo ou não desenvolver a doença", aponta o médico do Tocantins.
Formulações são específicas
A partir disso, começa o tratamento, que esbarra em um problema: "As formulações infantis líquidas ainda deixam a desejar. Estão melhorando, mas em um ritmo lento. Existe dificuldade em ter opções adequadas para crianças", observa Mayor.
Faria, de SC, lembra um outro fator complicador: embora as medicações estejam seguras e com menos efeitos colaterais existe uma diferença na apresentação. "Para o adulto, é possível combinar diferentes tipos de substâncias em um único comprimido. No caso da criança isso não é possível, principalmente naquelas de baixa idade. Com os xaropes, não há como realizar essas combinações", alerta.
Infelizmente, o aumento da posologia acaba por comprometer a adesão, uma vez que a criança terá de tomar três medicamentos de manhã e três à noite. Por essa razão, pais e responsáveis precisam ser orientados sobre a importância e a necessidade do tratamento.
Qual a hora ideal de contar ao pequeno paciente?
Se na infância é preciso sensibilizar os cuidadores, conforme a idade vai aumentando, vive-se um outro momento: contar ao pequeno paciente (que vai perguntar) o motivo pelo qual ele precisa de remédios, faz exames e vive indo ao médico.
Para que o processo ocorra de forma tranquila, não pode faltar, além de uma equipe multidisciplinar, franqueza e informação. "Na criança, usamos materiais lúdicos com animações, histórias em quadrinhos, falar que os soldadinhos do corpo dele estão com problemas de defesa etc.", esclarece Aroldo Prohmamm de Carvalho, infectologista pediatra, professor titular de pediatria da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e titular do Departamento Científico de Infectologia da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria).
Na opinião de Carvalho, esconder a realidade é sinônimo de problemas. "Algumas famílias preferem esconder e desaconselhamos esta conduta, porque a realidade se impõe. A vida, apesar do HIV, seguirá perfeitamente normal. O panorama da infecção mudou muito", analisa.
Empoderar o paciente é outro passo importante para ele ser um aliado e saber lidar com a patologia, diz Fabrício Silva Pessoa, infectologista pediatra do Hospital Universitário da UFMA (Universidade Federal do Maranhão).
"Às vezes, quando contamos, o jovem já incorporou o diagnóstico. Ficou sabendo na escola, na internet. A idade depende muito da maturidade, mas por volta dos 10, 12 anos, acontece essa conversa. De forma tranquila e sem traumas. Ter HIV não é mais sentença de nada e, com o tratamento adequado, a carga viral é indetectável", lembra Pessoa.
Como garante Sônia Maria de Faria, a rotina do tratamento é individualizada e depende do quadro de saúde da criança. Em média, são consultas e exames a cada três ou seis meses.
Adolescência, nova fase do jogo
Por volta dos 12, 13 anos, avança-se para mais uma fase do jogo: a puberdade e a adolescência e todas as questões hormonais envolvidas. Assuntos relativos à sexualidade precisam e devem ser discutidos.
Escutar é um verbo prioritário no dicionário de quem lida com esse paciente, mas a realidade não é bem essa, lamenta o hebiatra Benito Lourenço, responsável pela Unidade de Adolescência do Instituto da Criança e do Adolescente do HC-FMUSP.
"Uma publicação norte-americana de 2014 fez um trabalho com médicos de crianças e adolescentes que mostram o tempo que eles conversam temas relativos à sexualidade, como beijo na boca, camisinha, prevenção e ISTs (infecções sexualmente transmissíveis). O resultado foi absurdo: 30% dos especialistas conversam zero segundo e outros 30%, de 1 a 35 segundos".
Por isso, Lourenço fala que o adolescente deve ser chamado a ser parceiro e não apenas obediente às prescrições médicas. O mesmo vale para o uso do preservativo.
De acordo com o hebiatra, deve-se educar os jovens e mostrar que os preservativos têm tamanhos diferentes, ajudam a retardar a ejaculação e ainda previnem a gravidez. E mais: as meninas necessitam aprender que a camisinha é, também, uma questão de empoderamento.
"Essa garotada não viu pessoas, artistas morrendo de Aids como há 20 anos, então, não adianta colocar medo. E outra coisa: passamos, atualmente, pela chamada fadiga da camisinha e necessitamos de uma abordagem ainda mais direta".
Transmissão ascendente
Lourenço ainda comenta que, se a transmissão vertical tende a desaparecer daqui a alguns anos, a contaminação de adolescentes pelo HIV e outras ISTs, principalmente meninos, tem curva ascendente.
O Boletim Epidemiológico sobre HIV/Aids, de 2020, destaca o aumento de 64,9% da epidemia em jovens de 15 a 19 anos, entre 2009 e 2019. Além disso, o boletim mostra que entre indivíduos com 13 anos ou mais, a principal via de transmissão em 2019 foi a sexual, tanto em homens (79,3%) quanto em mulheres (87,3%). Entre os homens, observou-se o predomínio da categoria de exposição homo/bissexual.
"Tem gente que acha que adolescente não transa. Mas ele transa, sim, e o assunto precisa deixar de ser tabu. E vai transar sem preservativo —cerca de 40% não usam a proteção na primeira vez. Então, quanto mais informado, melhor", finaliza Lourenço.
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