Crianças com síndrome da zika evoluem movimentos com toxina botulínica
Crianças com problemas neuromusculares gerados pela síndrome congênita associada à infecção pelo vírus zika estão fazendo uso de toxina botulínica (também conhecida pelo nome comercial de botox) e obtendo bons resultados no relaxamento dos músculos enrijecidos.
Apesar do uso mais conhecido da toxina ser para fins estéticos, ela tem desempenhado um papel importante na medicina de reabilitação com crianças com vários tipos de problemas, graças ao poder de relaxamento dos músculos.
Associada à fisioterapia e terapia ocupacional, as crianças têm apresentado bons resultados e conquistado avanços nos movimentos.
Ruty Freires, dona de casa, é mãe de Tamara Freires, 6, que faz tratamento da síndrome na Associação Famílias de Anjos, em Maceió. A filha dela já fez cinco aplicações da toxina.
"Na primeira aplicação, ela tinha dois anos, e no começo ficou bem molinha, mesmo, e com bastante fisioterapia voltou ao normal", relata, citando que está feliz com os resultados.
"Eu gostei bastante. É maravilhoso o resultado. Quando a criança faz aplicação, porém, as sessões de fisioterapia têm que aumentar para que seja realmente eficaz", completa.
As aplicações são feitas por meio de uma sessão em consultório com uma uma seringa e agulha: o médico injeta a substância nos principais músculos com atividade anormal ou que produzem um maior distúrbio na movimentação do paciente.
Gabriela Gama, fisioterapeuta e pesquisadora do Ipesq (Instituto Professor Joaquim Amorim Neto), explica que o uso da toxina é feito porque muitas crianças com a síndrome apresentam resistência muscular ao movimento —o que dificulta as sessões.
"Essa contração muscular involuntária tem diversas repercussões: dificulta a evolução da função motora e os cuidados das mães até mesmo de higiene, além de outras repercussões como deformidades ósseas", conta a pesquisadora.
Segundo ela, em muitos casos, a resistência muscular impede o avanço do paciente. "Mas temos melhorado a mobilidade de algumas crianças porque o relaxamento da musculatura possibilita a fisioterapia fazer mais movimentos e promover uma melhor estimulação dessas crianças", diz.
No caso das crianças com síndrome da zika, o problema se tornou ainda mais sério com a suspensão de serviços durante a pandemia, quando tratamentos complementares foram suspensos ou eram feitos sob teleorientação.
Realmente a redução da assistência durante a pandemia parece ter piorado essa resistência em várias crianças. Mas nossa equipe tem observado bons resultados com a associação entre a aplicação da toxina e a fisioterapia. Gabriela Gama, fisioterapeuta
Herança do uso nas paralisias
O procedimento de uso da toxina botulínica com crianças herda uma experiência de sucesso com crianças que têm problemas neuromusculares similares, mas causados por paralisias cerebrais.
Carlos Alberto Musse, professor da Escola de Medicina da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), é especialista em medicina física e reabilitação e foi um dos autores do primeiro protocolo do Ministério da Saúde do uso da toxina botulínica tipo A, em 2003.
Ele conta que o uso em crianças da toxina vem ocorrendo desde os anos 1990 e atua para reduzir a espasticidade (rigidez).
"Na época, ela passou a ser usada na distonia [distúrbio de movimento involuntário]. Aí começamos a estudar doenças no cérebro mais comuns, como AVC [acidente vascular cerebral], e para crianças com problemas decorrentes do parto", diz o médico.
Ela produz um relaxamento muscular grande, bloqueia a liberação da substância que produz movimento, impedindo de mandar o músculo contrair. Assim, ele fica mais relaxado. Essa é a função: reduzir a hiperatividade muscular e a atividade involuntária muscular não controlada. Carlos Alberto Musse, médico
A hiperatividade muscular, diz, é decorrente de alguma lesão no cérebro ou na medula. Dentro desse contexto, as equipes podem usar a toxina dentro de um programa de reabilitação para facilitar os treinamentos. "Ela tem que ser aplicada dentro de um contexto de treinamento, porque o músculo relaxa e pode ser estimulado. Eu uso desde os anos 2000, com excelentes resultados", conta.
Musse explica ainda que esse tipo de tratamento é de longo prazo, e uma criança pode passar por várias aplicações —cada aplicação tem efeito de 4 a 6 meses produzindo relaxamento. "Aí depois disso se reaplica. Não tem limite, porque a substância fica no corpo por seis meses, depois some, é absorvida", conta.
No caso de uso infantil, ele afirma que há ainda uma vantagem, em comparação a adultos: o cérebro da criança está em constante aprendizado.
A toxina permite o relaxamento, e assim ela experimenta movimentos novos e que o cérebro tem chance de aprender. Nesse intervalo [de tempo de uso], ela vai adquirindo essa experiência e não perde após o fim do período, o cérebro vai fazendo novas conexões. Não é que tem cura, mas melhora. Carlos Alberto Musse
Efeito esperado da toxina nas crianças:
- Melhora no caminhar;
- Maior facilidade na abertura da mão;
- Melhora na higienização do paciente;
- Maior conforto no uso de cadeiras de rodas;
- Maior controle da hiperatividade muscular (movimentos e posturas irregulares);
- Maior facilidade no uso de órtese;
- Diminuição da dor que decorre de músculos contraídos e sem controle.
Pesquisa antiga
Carlos Alberto Musse ainda lembra que as pesquisas com uso da toxina nasceram muito antes do uso estético.
"Nos anos 2000, quando começaram a aplicar a toxina para os movimentos de espasmos nos olhos [blefaroespasmo] viram que desapareceram as rugas e aí começou-se a usar para estética", conta.
Hoje, a toxina tem uma grande lista de formas de uso. "As indicações atuais de uso da toxina vão desde o movimento muscular aumentado, dor pós-lesão de nervos e disfunção de bexiga, neuralgia do trigêmeo, dor pós-herpes zoster, por exemplo", explica Musse.
Segundo Ana Maria Mósca, pediatra e secretária do Departamento Científico de Dermatologia da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria), o avanço das pesquisas com a toxina possibilitou também uma série de usos medicinais em crianças, que apresentaram bons resultados.
Os estudos foram continuando e viram que ela poderia ser amplamente utilizada para distúrbios neurológicos, como bruxismo, por exemplo, ou pessoas que têm enxaqueca. Aí veio o uso para as paralisias motoras, e se usa a toxina para contrair a musculatura rígida. Ana Maria Mósca
Segundo ela, o uso da toxina é um procedimento "supersseguro e eficaz''.
"Há uma sequência de evolução no tratamento [com a toxina] em pessoas com paralisia cerebral, que têm, de uma maneira geral, alteração neurocognitiva e motora. Diferente da zika, a paralisia vem de um traumatismo durante o parto em que houve lesão neurológica —e que vai afetar áreas motoras do organismo. Se o músculo é hipertenso, e você tira essa rigidez, melhora", finaliza
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