Por meningite, ela amputou braços, pernas e teve 80% da pele necrosada
Jessica Oliveira (@jessyborg.oficial), 17, ainda brincava de bonecas e tinha a ingenuidade de uma criança de 10 anos, quando, durante uma viagem com a avó materna em 2015, apresentou os primeiros sintomas e sinais de uma meningite bacteriana que lhe deixou graves sequelas. Durante o 1 ano e 2 meses que ficou no hospital, ela amputou os dois braços, as duas pernas, perdeu a audição e teve 80% da pele necrosada.
Nesse depoimento, a dona de casa Silvania Martins, 34, conta como a filha, que se tornou palestrante e nadadora paralímpica, ressignificou tudo o que passou para sobreviver. O objetivo de Jessica é mostrar como o poder de uma decisão pode transformar uma vida e como ela escolheu ser feliz.
"No dia 17 de maio de 2015, Jessica reclamou de uma forte dor de cabeça e de enjoos durante uma viagem de ônibus que fez com a minha mãe para Angra dos Reis —eu tinha ficado no Rio de Janeiro trabalhando.
Chegando na casa da minha tia, ela me ligou para falar que estava se sentindo febril e enjoada. Eu disse para ela descansar, que o mal-estar deveria ser por conta da viagem longa.
Na madrugada, ela acordou vomitando e com muita fraqueza. Minha mãe foi dar um banho nela para levá-la à emergência quando notou várias manchas roxas pelo corpo. Em seguida, ela desmaiou. Quando acordou, minha filha começou a gritar de dor como se o corpo dela estivesse queimando.
Ela foi levada à UPA (Unidade de Pronto-Atendimento). Inicialmente, a médica suspeitou que fosse dengue hemorrágica, mas logo descartou a hipótese. Ela foi encaminhada a um hospital onde coletaram uma amostra do líquido da espinha e já entraram com medicação.
O estado da Jessica piorou muito rápido. Minha filha estava irreconhecível quando a vi, os lábios estavam necrosados, as unhas pretas e o corpo cheio de manchas roxas. A médica só esperou eu e meu marido chegarmos para intubá-la. Segundo ela, o caso da Jessica era muito grave, e ela não sabia se ela iria resistir.
Minha filha foi diagnosticada com meningite meningocócica tipo C, aos 10 anos. Naquele momento, entreguei a vida dela nas mãos de Deus, descansei nEle e meu coração foi confortado de fé. Não me desesperei e não entrei em pânico, mesmo com a situação dela piorando a cada dia. Isso até gerou um estranhamento nas pessoas, a médica chegou a dizer: 'Mãe, acho que você não está entendendo a gravidade do caso', mas eu entendia, tinha certeza que ela ia sobreviver.
Três dias depois, Jessica foi transferida para um hospital com mais estrutura e ficou 20 dias intubada. Ela ficou com diversas sequelas e foi tratada como uma paciente com queimaduras, ficou com o corpo cheio de bolhas, em carne viva e enfaixada.
O processo de retirar as faixas, passar o produto e enfaixar novamente era doloroso e demorado, demorava cerca de 3 horas. Eu colocava as músicas do Luan Santana para ela se distrair e conversava com ela.
Um mês depois do diagnóstico, as médicas vieram conversar comigo para preparar a Jessica para fazer o desbridamento (remover os tecidos necrosados) e para amputar os braços e as pernas. A equipe fez vários exames e avaliações antes de chegar a essa decisão. Eles explicaram que se ela não amputasse, a infecção poderia avançar para outras partes do corpo.
Lembro até hoje como foi a conversa com ela. Falei assim: 'Filha, você está vendo que a mamãe aperta seus dedinhos e você não sente nada. O bichinho, chamado meningite, que fez essas coisas, ainda está dentro de você, se a gente não tirá-lo, ele pode te machucar ainda mais. Para isso, a gente vai precisar amputar, tirar seus braços e suas perninhas'.
Ela respondeu: 'Como assim, mãe, como vou viver sem meus braços e minhas pernas?'. Mostrei para ela um vídeo do Pedro (VivaBem já contou a história dele), um homem amputado devido às sequelas da meningite. Expliquei que ela poderia continuar com a vida dela normalmente, brincando e indo à escola depois que saísse do hospital.
Até hoje não tenho outra explicação a não ser dizer que Deus a convenceu. Ela disse assim: 'Mãe, o importante é eu estar viva, vamos logo tirar esses braços e pernas, quero voltar para casa, e ficar com a minha família e meus amigos'.
Na mente dela de criança, ela tinha confiança de que iria dar tudo certo. Ela tinha uma fé e um alto astral que contagiava a todos.
Em poucas semanas, ela amputou as pernas, os braços, e posteriormente os dois joelhos que atrofiaram. Com passagens em três hospitais, Jessica ficou um ano e dois meses internada. Nesse período, ela teve várias intercorrências, entre elas, duas infecções generalizadas.
Como sequela da meningite, ela também perdeu a audição, o que a deixou triste. 'Mãe, como é que ouvir minhas músicas?. Ela rapidamente se adaptou: a gente escrevia bilhetes ou falava bem devagar para ela fazer leitura labial.
Jessica recebeu alta em julho de 2016. O ano coincidiu com os Jogos Paralímpicos no Rio de Janeiro. Ela assistiu aos jogos e ficou apaixonada pela natação. Quando viu os atletas, me disse: 'Posso estar ali também'.
Naquele mesmo ano ela entrou num projeto que oferecia aulas de natação para pessoas com deficiência, onde ficou por dois anos e também aprendeu a surfar num projeto paralelo. Jessica sonhava alto, dizia que não queria só aprender a nadar, mas queria ser uma atleta de verdade e competir.
2019 foi um ano de descobertas e conquistas. Com a ajuda de um amigo, ela entrou para a equipe de natação paralímpica do Vasco da Gama, onde treina diariamente, e se formou como atleta com o objetivo de representar o Brasil.
Ela também entrou para o Correndo Por Eles, que promove corridas de ruas adaptadas para pessoas com deficiência. Durante as provas, eu e meu marido nos revezamos para empurrá-la no triciclo, mas o objetivo dela é aprender a correr com as próteses de corrida para correr sozinha.
Desde que amputou os membros superiores e inferiores há seis anos, Jessica já conseguiu algumas próteses, entre elas uma pelo SUS, uma que compramos com dinheiro arrecadado com rifas e campanhas na internet, e de doação, mas a adaptação ainda é muito difícil, ela precisa de uma reabilitação.
Em 2020, minha filha conseguiu realizar outros dois projetos, se tornar palestrante e lançar o livro 'Desista de Desistir', em que ela conta como se reinventou e ressignificou tudo que passou devido às sequelas da meningite e como tomou a decisão de ser feliz.
Nas palestras, Jessica lembra do tempo em que ficou no hospital e conta como via a luz de Deus brilhar para ela. Mesmo aos 10 anos, ela diz que queria lutar para viver. Ela entendeu que a dor era inevitável, mas o sofrimento era opcional.
Ela incorporou a frase 'desista de desistir' depois que se deu conta como a nossa mente tende a escolher o caminho mais fácil nos momentos difíceis: a desistência. Sendo assim, se for para desistir de algo, que a pessoa desista de desistir.
O objetivo dela é mostrar como o poder de uma decisão pode transformar uma vida. Aos 17 anos, minha filha se prepara para o maior sonho dela: participar das Paralimpíadas de 2024 em Paris.
Passar por tudo o que passamos não foi fácil, mas o fato de a minha filha estar viva e ser um milagre é o suficiente para sermos gratas.
Antes da Jessica ter meningite, não tinha conhecimento dessa doença e, consequentemente, não sabia que existiam vacinas específicas que atuavam na sua prevenção, embora ela estivesse com as vacinas do posto em dia.
Ela já participou de algumas campanhas de conscientização da meningite, e uma coisa é fato, a prevenção é sempre o melhor caminho. Por isso, na dúvida, conversem com o médico, se informem e vacinem seus filhos."
O que é meningite?
É a inflamação das meninges, membranas que envolvem o cérebro e a medula espinhal. Existem várias causas, mas os principais agentes são vírus e bactérias. Em geral, a transmissão ocorre pelas vias respiratórias, de pessoa para pessoa, através de gotículas, sendo necessário contato próximo no mesmo ambiente. Alguns indivíduos podem apresentar a doença e transmitir ou mesmo transmitir sem estarem doentes.
Existe também a transmissão de alguns vírus pela via fecal oral direta ou ainda por alimentos e água contaminados. A doença pode atingir todas as idades, mas sua maior incidência é principalmente em crianças, adolescentes e adultos jovens.
Quais os tipos de meningite?
As meningites virais ocorrem mais no verão e são causadas por enterovírus, adenovírus, herpes-vírus, vírus da caxumba e varicela, entre outros. Geralmente acometem crianças a partir de um ano de idade, adolescentes e adultos jovens. Tem um curso mais benigno e o tratamento é sintomático e evolui para a cura.
As meningites bacterianas acontecem mais no inverno e apresentam altas taxas de morbidade e letalidade. Como agentes etiológicos, podemos citar o meningococo (sorogrupos B, C, W e Y são os mais comuns no nosso meio); o pneumococo; H. influenzae, entre outros. Existe um risco alto para sequelas, mas o diagnóstico precoce, associado ao tratamento imediato com antibióticos, pode mudar a evolução da doença.
Quais os sintomas?
Na meningite viral, os sinais e sintomas são agudos e estão ligados também ao tipo de vírus envolvido. Enterovírus podem dar febre, diarreia, náuseas, vômitos, dor abdominal. Quando o agente é um adenovírus, pode haver associação de sinais respiratórios.
Os sinais clínicos da meningite bacteriana dependem da faixa etária acometida, mas em geral são febre, alterações do sistema nervoso (sonolência, irritabilidade, convulsão), recusa alimentar, cefaleia, vômitos etc.
Como é feito o diagnóstico?
O exame físico da criança é fundamental para a suspeição do diagnóstico. A confirmação ocorre por meio de uma punção lombar, quando uma amostra do líquido cefalorraquidiano é obtida para análise.
Como se prevenir da meningite?
Adotando medidas de higiene, como lavar as mãos, não compartilhar talheres, dar preferência por ambientes arejados e manter a vacinação atualizada. A vacinação ainda é a alternativa mais eficaz para a prevenção da doença.
Quais vacinas agem contra a meningite?
O calendário nacional de vacinação do Ministério da Saúde oferece as vacinas para H. influenzae (um dos componentes da vacina pentavalente); meningocócica C até 10 anos de idade (extensão de faixa etária recente para melhorar as coberturas vacinais); ACWY para adolescentes de 11 e 12 anos; e a vacina pneumocócica conjugada 10 valente para menores de cinco anos.
É importante ressaltar que a tuberculose também pode causar meningite, prevenível pela vacina BCG. As vacinas tríplice viral e varicela também previnem meningoencefalites virais. As vacinas ACWY e meningocócica B estão disponíveis na rede privada.
Quais sequelas a doença pode deixar?
Podem ser sequelas agudas ou a longo prazo, principalmente as neurológicas, que atingem até 20% dos casos. Pode haver perda auditiva, alterações do desenvolvimento neuropsicomotor (convulsões, paralisia cerebral e deficiência intelectual) e até causar mutilações.
Como a meningite afeta a audição?
A surdez é uma das muitas possíveis sequelas da doença devido à uma reação inflamatória intensa que ocorre no sistema nervoso central. A surdez pode ocorrer em 10% a 20% dos casos.
Como a meningite afeta a pele?
O acometimento da pele ocorre quando o agente etiológico for um vírus que cause exantema (o corpo fica pintado como rubéola) ou ainda quando a bactéria invade a corrente sanguínea e se multiplica, lesa a parede dos vasos sanguíneos e causa sangramentos na pele, em maior ou menor grau, como o aparecimento de petéquias (pequenos pontos vermelhos, como picada de inseto, que não desaparecem quando fazemos a compressão com os dedos), púrpura (lesões maiores vermelhas com aparência de sangue extravasado), que podem atingir várias áreas do corpo ou ainda evoluir para lesões mais graves, com alterações na circulação para as extremidades, levando à necrose e posterior amputação em várias alturas dos membros.
A doença tem cura?
Sim, a meningite causada por agente viral normalmente apresenta melhor prognóstico e menos complicações.
A meningite bacteriana é bem mais grave, com letalidade mais alta, porém o diagnóstico precoce e o tratamento imediato podem mudar o curso da doença. O melhor remédio continua sendo a prevenção através da vacinação.
Fonte: Tânia Petraglia, presidente do Departamento Científico de Infectologia da Soperj (Sociedade de Pediatria do Estado do Rio de Janeiro).
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