Casal trans, ele engravidou e ela vai amamentar: como fica a hormonização?
A empreendedora Erika Fernandes, 28, sempre sonhou em construir uma família. Mulher trans, isto é, que não se identifica com o gênero do nascimento (no caso, masculino), escutou e vivenciou com frequência que "construir uma família" ou até mesmo encontrar o amor não era para ela.
Mas, em 2020, quando começou a se relacionar com Roberto Bete, 32, um homem trans, algo mudou. Depois de algumas trocas de mensagens pelo Instagram, voltou de uma viagem ao Rio de Janeiro e foi direto conhecê-lo. Passou três dias seguidos na casa dele.
"Fui na sexta e fiquei até domingo. Mas ele não queria nada sério. Eu já queria casar e construir família", conta, aos risos. Roberto, por outro lado, tinha acabado de fazer a mastectomia (cirurgia de remoção completa das mamas que alguns homem trans podem optar por fazer) e, por isso, estava no "ápice da transição", como ele mesmo disse. "Queria curtir a vida. Tinha saído de um casamento e fiquei muito tempo com uma pessoa", lembra.
Depois de algumas idas e vindas, brigas "bobas", o relacionamento fluiu tanto que, após um ano juntos, resolveram dar um novo passo: tentar ter um bebê. O documentário Pai Grávido, produzido por MOV, a produtora de vídeos do UOL, VivaBem, a plataforma de saúde e bem-estar do UOL, e o Núcleo de Diversidade do UOL, mostra o tratamento que Erika fez para conseguir produzir leite, além —é claro— da chegada de Noah. O vídeo está disponível acima e no YouTube.
A reportagem abaixo explica como foi a interrupção dos hormônios —que faz parte da transição de gênero dos dois— para conseguir engravidar. E, com isso, todos os impactos no organismo e no relacionamento.
Ela parou hormônios para voltar a produzir espermatozoides
Vale esclarecer que nem toda pessoa trans faz hormonização —também conhecida como terapia hormonal ou hormonioterapia. Isso é uma escolha muito individual e não existe regra.
No caso da Erika e do Roberto, ambos faziam o tratamento com acompanhamento de um endocrinologista. A empresária utilizava bloqueador de testosterona, além de realizar a reposição de estrogênio, hormônio responsável por desenvolver características consideradas femininas, além da progesterona, outra substância que auxilia no crescimento do tecido mamário.
Quem explica melhor é o médico Carué Contreiras, do CRT (Centro de Referência e Treinamento DST/Aids) Santa Cruz, em São Paulo, onde o casal realiza acompanhamento com endocrinologista e fez o pré-natal da gravidez.
"Os hormônios feminilizantes vão provocar uma redução e afinamento dos pelos do corpo —e eles vão crescer mais devagar—, um crescimento lento das mamas e uma mudança na redistribuição da gordura corporal, com maior concentração no quadril e nas nádegas. Há ainda uma suavização da pele", diz.
Essa reposição de hormônios, como o estrogênio, pode impactar na questão da fertilidade da mulher trans. "Tanto o bloqueador de testosterona quanto o estrogênio vão alterar a produção de esperma pelo testículo. Muitas pacientes relatam que o esperma fica mais fino e mais transparente", conta Contreiras. "Por isso a capacidade de uma mulher trans ou travesti de se reproduzir também pode ficar reduzida", explica o médico.
Aliás, segundo os especialistas consultados por VivaBem, nenhum estudo ainda conseguiu concluir se o uso prolongado desses hormônios pode deixar uma pessoa infértil. Sabe-se que há um impacto, mas não se de forma definitiva ou temporária. Mas uma vez que esse uso é interrompido, o mais comum é que a pessoa fique fértil novamente.
Erika lembra que chegou a fazer exames para checar a qualidade dos espermatozoides, o espermograma, mas o resultado mostrou que estava tudo certo.
E o uso de testosterona, impacta a fertilidade? Pode causar atrofias no útero?
No organismo, a testosterona age interrompendo a menstruação da pessoa, mas todos os especialistas reforçam a mensagem: o uso do hormônio não é um método contraceptivo. Há relatos de quem fazia terapia hormonal e mesmo assim engravidou, principalmente se o uso não for feito corretamente e com acompanhamento médico.
A testosterona é ainda responsável por desenvolver, aos poucos, características físicas consideradas masculinas, como barba, mais pelos no corpo e mudanças na localização da gordura corporal e no timbre da voz.
Segundo Aleide Tavares, ginecologista do Espaço Trans do Hospital das Clínicas da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), da rede Ebserh, o uso prolongado da testosterona pode causar infertilidade provisória ou definitiva. "Mas ainda não sabemos qual fator determina se será temporária ou permanente", explica.
Quando é provisória, o esperado é que o ocorra da mesma forma que foi com Roberto: após um período (podem ser meses ou anos), a pessoa volta a ovular (e não necessariamente menstruar) e, consequentemente, volta a ser fértil. Em seguida, quando existe a chance da fecundação, ocorre a gravidez.
O empresário pausou o uso da testosterona por mais de um ano até conseguir engravidar —período em que voltou a menstruar. Mas não foi fácil. Teve muita mudança de humor, ele conta que ficou mais desanimado e triste. O casal passou por vários momentos de estresse durante essa espera.
Aliás, durante a gravidez, a ingestão do hormônio é proibida, pelos riscos de afetar a saúde do bebê e, por recomendação médica, só pode ser reiniciada pelo menos após o período de puerpério (no mínimo 45 dias), com auxílio dos especialistas.
Uma outra preocupação é o se o útero pode ficar atrofiado neste processo de reposição. Acontece que a testosterona bloqueia a produção de estrogênio, hormônio responsável pelo trofismo (tamanho normal) do útero. Por isso que o volume do órgão pode mesmo diminuir. "Poderíamos comparar com a atrofia do útero que acontece após a menopausa, pela ausência do estrogênio", explica Tavares. Ao interromper a terapia, o esperado é que o útero volte ao tamanho normal.
E uma vez que o corpo volta a ovular e ficar fértil, tudo pode acontecer. No caso de Roberto, a espera foi de mais de um ano, tempo que levou para voltar a menstruar. No seu terceiro ciclo, recebeu o positivo no teste de gravidez.
Para Erika, as mudanças de humor de Roberto já eram indicativos de que, talvez, ele já estivesse grávido. "Ele estava irritado. Uma hora me queria por perto e, depois, longe. Começaram alguns desejos estranhos, ele queria comer coisas ácidas, como limão com sal e verduras em conserva. Além disso, a menstruação dele estava atrasada", lembra.
Erika quer amamentar e está produzindo leite: como funciona?
Assim que descobriram a gravidez, Erika foi pesquisar se existia a possibilidade de ela produzir leite para amamentar Noah. Quando descobriu que a resposta era sim, foi buscar casos bem-sucedidos. "Não achei mulheres trans que lactaram, mas achei médicas que faziam indução da lactação", conta a empreendedora.
Em conversa com as especialistas, logo perguntou se era possível amamentar. Animada, deu início a um processo que superou as expectativas da dupla responsável pela indução da amamentação.
Além de utilizar estrogênio e progesterona por conta da transição —hormônios que voltou a tomar logo após a confirmação da gravidez de Roberto—, Erika passou a ingerir a domperidona, remédio indicado para problemas estomacais e que só pode ser suplementado sob orientação médica.
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