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Autismo aumenta a seletividade alimentar: 'Julgam meu filho como birrento'

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Do VivaBem, em São Paulo

02/08/2022 04h00

Quando o filho da estudante Luamy Aquino Ogawa, 33, tinha 2 anos e 6 meses, ele recebeu o diagnóstico de TEA (transtorno do espectro autista). O pequeno Enrico Yudi, hoje com 6 anos, faz tratamentos com terapias desde então e, entre os sintomas, apresenta intensa seletividade alimentar, rejeitando a maioria das comidas.

"A alimentação dele é basicamente arroz, feijão, carne e frango cozidos com batata", conta Luamy. Entre as bebidas, o menino aceita água e algumas marcas de suco. Com resistência ao sabor doce, tem bastante dificuldade em consumir frutas.

"Teve um evento na escola sobre paladar e a professora pediu para cada aluno levar uma fruta. Ele passou mal, ficou em um cantinho e vomitou, porque não consegue nem ficar perto quando o cheiro é forte", comenta.

A seletividade alimentar é um comportamento comum em pessoas com TEA, por conta dos padrões repetitivos característicos da condição e a maior sensibilidade aos estímulos. Esses fatores fazem com que as percepções sejam intensificadas, tornando as pessoas com a condição menos tolerantes a alguns cheiros, texturas, temperaturas e gostos de alimentos, por exemplo.

"O cérebro consegue filtrar estímulos e, em quem tem autismo, isso pode vir hiperestimulado, o que acaba tendo reflexo no comportamento alimentar", explica a neuropediatra Silvana Kruger Frizzo, especializada pelo HCFMUSP (Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo).

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Crianças podem ter dificuldade em provar alimentos
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Impactos além da saúde física

A seletividade não é exclusiva do transtorno do espectro autista. Por isso, o comportamento pode ser intensificado de acordo com aspectos culturais, socioeconômicos e até mesmo o fato de os pais não diversificarem a alimentação.

No caso do autismo, algumas crianças —e adultos também— podem preferir alimentos de uma mesma cor e/ou textura. Outros ainda costumam fazer escolhas considerando o tipo de embalagem.

No lanche da escola, Enrico come apenas chocotone. Mas, assim como tem preferência por marcas de sucos, é preciso que o produto também seja de rótulos específicos. "Eu procuro chocotone durante o ano inteiro. Já tentei fazer em casa, mas ele sente a diferença só de olhar e não come. Se você insistir, ele tem ânsia", relata Luamy.

A restrição extrema pode desencadear problemas à saúde, sobretudo para crianças em fase de desenvolvimento, alerta a nutricionista Adriana Peloggia, doutora pela USP e professora do Centro Universitário São Camilo (SP). "É o caso da constipação crônica pelo baixo consumo de fibras, diarreias, dor abdominal, inflamação gastrointestinal e a carência nutricional ou obesidade, dependendo das escolhas alimentares", destaca.

No entanto, algumas pessoas podem sofrer consequências além da saúde física. Um dos principais impactos é justamente em restringir os momentos sociais, pela aversão em ter contato com algumas comidas.

"Pode ter consequência para a própria pessoa, causando a exclusão de convites, de deixar de passar momentos na casa de amigos. Isso prejudica a interação e causa sentimentos de exclusão", indica a psicóloga Ana Tereza Azevedo, do Huol-UFRN (Hospital Universitário Onofre Lopes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte), vinculado à Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares).

Para Luamy, lidar com a opinião de quem não compreende a situação também é outro desafio.

Percebemos julgamentos no dia a dia. Julgam o meu filho como uma criança birrenta, e, eu, como uma mãe fresca. As pessoas falam para oferecer mais coisas, elas não entendem que não posso simplesmente colocar na boca do meu filho.

Em viagens, conta, a prioridade é encontrar estadias com cozinha para poder preparar as refeições e, em restaurantes, é preciso que os ambientes não sejam cheios de estímulos para priorizar o conforto do pequeno.

A seletividade não é algo que isola Enrico do convívio, ela diz. O menino vai a confraternizações, como aniversários de amigos, mas nesses casos Luamy também costuma fazer as comidas do filho ou opta por levá-lo ao evento após ele já ter se alimentado em casa.

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Algumas pessoas podem rejeitar convites, como forma de evitar o contato com certas comidas, e passam a se sentir mais sozinhas
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Dessensibilização exige calma

Algumas abordagens aliviam a seletividade alimentar associada ao autismo, mas é preciso entender que elas são um trabalho construído aos poucos. Tentar apressar o processo pode trazer prejuízos à criança, principalmente se ela for forçada a experimentar as comidas.

Assim como os demais tratamentos para pessoas com transtorno do espectro autista, essas práticas são multidisciplinares —contando com equipes que costumam envolver nutricionistas, psicólogos e terapeutas ocupacionais, no caso da seletividade.

O objetivo é reduzir a sensibilidade para que a pessoa se sinta confortável em ampliar os tipos e formas de alimentos que consome. "Você dessensibiliza, apresentando de forma gradual, para existir adaptação. É algo que leva muito tempo, a seletividade precisa de anos de tratamento e a preocupação é trazer para um nível saudável de dieta", afirma a neuropediatra Silvana Kruger Frizzo.

Geralmente, o processo envolve modelos de oficinas para apresentar grupos de alimentos às crianças. Mas até experimentar a comida existem muitos passos anteriores: primeiro, há apenas conversas para entender do que se trata. Depois, ela pode sentir o cheiro, encostar os lábios e a língua. Então, se estiver confortável, provar.

O apoio familiar é essencial neste trabalho, e os pais podem, inclusive, ser treinados para lidar e orientar os filhos da melhor forma. Esse acompanhamento é um diferencial, porque são os cuidadores que acompanham os pequenos 24 horas por dia.

Para os adultos com TEA e seletividade alimentar, ter o suporte da família e dos amigos também ajuda a conviver com o comportamento. As intervenções nesta faixa etária costumam analisar o repertório alimentar da pessoa, investigando se a restrição nas escolhas também se justifica por ela não ter sido apresentada na infância a certos grupos de alimentos, por exemplo.