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'Faltou o Zé Gotinha para mim', diz vítima da pólio, que tem risco de volta

Beth Cerquinho teve poliomielite na infância - Arquivo Pessoal
Beth Cerquinho teve poliomielite na infância Imagem: Arquivo Pessoal

Anahi Martinho

Colaboração para VivaBem

17/08/2022 04h00

Beth Cerquinho, 60, é psicanalista e cadeirante. Ela foi vítima da poliomielite, uma doença para a qual já existia vacina, e perdeu o movimento das pernas antes mesmo de aprender a andar.

Beth passou por 32 cirurgias, viveu parte da infância e da adolescência em hospitais e sofre até hoje com as consequências da pólio. Em 1962, ela não teve acesso à vacina na região onde morava, no interior de São Paulo. Hoje, a doença, erradicada há 30 anos, corre o risco de voltar por falta de adesão à imunização.

"Aos 11 meses, por falta de vacina, contraí poliomielite e tive paralisia infantil. Estava começando a dar os primeiros passos e já fui acometida pelo vírus. Perdi o movimento das duas pernas e hoje sou cadeirante. Faltou o Zé Gotinha para mim.

Hoje tenho 60 anos e de lá para cá passei por 32 cirurgias corretivas. Passei a maior parte da infância e adolescência em hospitais, sempre fazendo cirurgias, sempre fazendo fisioterapia, indo e voltando do hospital. Se não cuidar, entorta uma coisa, entorta outra e resulta em cirurgia.

Em 1962, só existia vacina nas grandes capitais. O ministro da Saúde da época não achou necessário fazer uma vacinação em massa. Eles só fizeram campanha depois que teve um surto apavorante no interior de São Paulo. Eu morava em Buri (SP).

Muita gente morreu. E quem sobreviveu ficou como eu, sequelado. Tem gente que teve paralisia total, nos braços, nas pernas, só um braço, só uma perna. O vírus fez a festa. Tinha dois internos no Hospital das Clínicas vivendo até hoje no pulmão de aço [tipo de ventilador que permite a uma pessoa respirar em caso de paralisia dos músculos da respiração].

Não precisei de tudo isso, mas precisei de cuidado. Casei, tive uma filha e estou sendo cuidada até hoje. É uma sequela que você leva até o final da vida. Até hoje sinto dores, faço fisioterapia a vida inteira.

Quando passou a ter a campanha de vacinação, logo depois do surto que me acometeu, as pessoas pobres, que moram em zonas rurais, andavam quilômetros para vacinar seus filhos. Hoje tem pessoas ignorantes que são antivacina.

Quando vi gente recusando a vacina da covid, fiquei decepcionada, não acreditei no que estava ouvindo. Só tinha visto isso em filme americano. Nunca imaginei ver brasileiros recusando uma vacina, principalmente da minha geração, que passou por tudo isso.

Vi que teve um caso recente de pólio nos Estados Unidos. É um pulo para a doença voltar com tudo. Hoje, basta um voo de avião para o vírus se espalhar.

Sempre digo que qualquer pessoa da minha família tem o dever moral de vacinar seus filhos. Todo mundo que acompanhou meu sofrimento, essa penúria física, sempre atrás de um tratamento, de uma melhora, tem a obrigação de vacinar suas crianças. [Não vacinar] é muita hipocrisia, é não se colocar no meu lugar.

Se você não leva sua criança para vacinar, você é, sim, responsável pelo que vai acontecer com ela. Eu queria que essa responsabilidade fosse criminal.

Estou sempre com as vacinas todas em dia: gripe, influenza, dupla adulto (difteria e tétano), tomei todos os reforços da covid. Quando minha filha nasceu, preenchi toda a cadernetinha dela. Tinha campanha, eu levava.

Sou engajada nas campanhas contra pólio, cedo minha imagem, participo de eventos, estou sempre nessa luta. Acho que ninguém merece passar por isso que eu passei.

Minha esperança é que os cientistas não desistam de trabalhar a nosso favor. É impressionante o desrespeito à ciência que estamos vendo atualmente."

'Ameaça é concreta'

Erradicada há três décadas, a poliomielite tem preocupado médicos devido à baixa cobertura vacinal, que vem caindo desde 2017.

Em 2021, somente 67% do público-alvo recebeu o imunizante contra pólio —bem longe do ideal, que é de 95%, de acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde).

No dia 21 de julho deste ano, nos EUA, o CDC (Centro de Controle de Doenças, na sigla em inglês), confirmou um caso da doença em Rockland County, no estado de Nova York, o que não acontecia desde 1992.

Segundo Evaldo Stanislau, médico infectologista do Hospital das Clínicas, "a ameaça é concreta": Se tivermos apenas um caso confirmado de pólio no Brasil, estaremos diante de um problema de saúde pública de grande magnitude", alerta.

Isso porque, além de altamente transmissível, o poliovírus tem sua propagação facilitada em locais com saneamento básico precário, uma vez que é transmitido via fecal-oral. O Brasil, que já teve vacinação exemplar perante a OMS, hoje está incluso na lista de países de alto risco para a poliomielite.

Covid foi divisor de águas

Stanislau atribui a queda da cobertura vacinal a um conjunto de fatores. "As campanhas de vacinação nos últimos anos têm sido bastante tímidas. Além disso, a geração atual não cresceu vendo pólio, falando de pólio, e se não temos campanha e não falamos sobre a doença, você não se lembra dela e não se atenta à importância de se vacinar", diz.

Outro fator apontado pelo especialista foi a queda da procura pelos serviços de saúde durante a pandemia de covid. "E em quarto lugar, e eu quero crer que isso seja um problema menor no Brasil, há o movimento antivacina", diz. "Tanto obscurantismo na discussão sobre vacinas pode ter respingado na vacina da pólio também."

Segundo Carla Kobayashi, médica infectologista do Hospital Sírio-Libanês (SP), a pandemia de covid foi um "divisor de águas" na questão vacinal.

"Todo mundo virou especialista em vacina, passou-se a discutir qual vacina, qual marca. Isso poderia ser favorável, pois, quanto mais informação, melhor para a população. Mas o que vimos foi um cenário desfavorável, com muita fake news, desinformação, o que acabou afastando ainda mais a procura por outras vacinas, inclusive as que estão no calendário vacinal do Brasil desde a década de 1970", lamenta.

Doença não tem cura e pode matar

A infecção pelo poliovírus inicialmente tem sintomas inespecíficos, como febre e dor de garganta. O perigo começa quando o vírus atinge o sistema nervoso central, podendo deixar sequelas neurológicas.

Dependendo do nervo afetado e do nível de comprometimento, a pessoa pode ter perda das funções motoras, atrofia de membros e lesão dos músculos respiratórios —o que pode levar à morte.

Stanislau lembra que não há cura. "É uma doença altamente transmissível e uma vez que a pessoa se infecte, fazemos um tratamento de suporte, mas a chance de ter uma sequela ou morrer de pólio é grande."

Campanha vai até setembro

A campanha nacional com foco na prevenção da poliomielite começou no dia 8 de agosto e vai até o dia 9 de setembro. O grupo-alvo são as mais de 14 milhões de crianças menores de 5 anos. A vacina injetável é aplicada aos 2, 4 e 6 meses de idade, e o reforço é em gotas para as crianças de 1 a 4 anos que já tomaram as três primeiras doses injetáveis.

Stanislau faz um apelo aos pais e responsáveis de crianças: "Que eles não percam a oportunidade de imunizar seus filhos, pois a ameaça é real. Precisamos urgentemente retomar os níveis de proteção vacinal acima dos 90% que já tivemos no passado."

Além da pólio, Kobayashi alerta para a importância de outros dois imunizantes: a tríplice viral, que protege contra sarampo, caxumba e rubéola, e a vacina contra meningite. "O momento é ideal para que os pais aproveitem a ida ao posto para atualizar a carteira vacinal das crianças, completando todas as vacinas que estiverem em atraso", diz.