O que acontece no seu corpo quando você fuma maconha (quase) todo dia

Ela tem tradição milenar, histórico de utilização medicinal, na fabricação de tecidos, cordas, alimentos, possui a fama de trazer bem-estar, mas ainda é ilegal em alguns países. Estamos falando de uma família de plantas que tem entre suas espécies a Cannabis sativa, também conhecida como maconha.

Fumar é a forma mais comum do consumo da cannabis, e ela é rapidamente absorvida pelo corpo por meio da inalação para dentro dos pulmões.

Os efeitos psicoativos são imediatos —de segundos a minutos— o que se deve a um de seus componentes, o Δ9-HC (delta-9 tetrahidrocanabinol).

A maconha é a substância ilícita mais usada no mundo.

1 em cada 5 brasileiros já fumou alguma vez na vida. Entre estes, 25% ainda o fazem.

5% dos indivíduos maiores de 18 anos fumam atualmente. A maioria é homem e jovem.

8% da população nunca teve contato com ela. Dados do Datafolha.

Por dentro da maconha

Ela deriva da família Cannabis, que tem entre suas espécies a Cannabis sativa L ou cânhamo, Cannabis sativa indica ou Cannabis sativa sativa, cujas propriedades diferem de acordo com suas composições químicas.

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O seu cultivo conta 12 mil anos e teve início em uma região que hoje constitui a China. O vegetal contém mais de 400 componentes, entre eles, terpenos, flavonoides e os fitocanabinoides.

Conheça os itens mais estudados:

THC ou tetrahidrocanabinol - atua predominantemente no SNC (sistema nervoso central) e, portanto, tem maior potencial psicoativo e euforizante, além de terapêutico.

CBD ou canabidiol - possui propriedades analgésicas e anti-inflamatórias, imunomoduladoras, atua também no SNC, mas sem efeitos intoxicantes.

Quando a planta está madura, as flores são cortadas para secagem. Secas, elas possuem quantidades de THC que correspondem de 5% a 30%, a depender da espécie.

Do ponto de vista farmacológico ou toxicológico, a maconha é classificada como depressora e "perturbadora" do SNC, dada a presença do THC.

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A depender da dose e do perfil bioquímico da planta, pode haver efeito estimulante e/ou sedativo.

Os efeitos no seu corpo

Os cientistas continuam observando as potenciais consequências do uso continuado da maconha na saúde.
Entre os desafios dos pesquisadores destaca-se o fato de que ela possui ações complexas e variadas, e que são influenciadas por variados fatores, como dose, frequência de uso, idade do início do consumo, assim como a presença de condições de saúde pré-existentes.

Além disso, como a maconha é uma droga ilegal em algumas regiões do mundo, não é possível padronizar os estudos considerando sua pureza, qualidade e potência do THC, sem falar do risco de esses produtos possuírem componentes como pesticidas, outras drogas, metais pesados, bolor e fungo, entre outros contaminantes.

Ainda assim, a literatura médica hoje disponível tem associado o uso frequente (diário ou quase diariamente) da cannabis aos seguintes resultados, que podem durar por dias, semanas e meses, mesmo após parar de usá-la. Confira:

Mudanças neurológicas

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Problemas nas vias aéreas superiores e inferiores

O cérebro reclama

A depender da maior ou menor sensibilidade aos efeitos da maconha, ao longo do tempo o uso continuado pode aumentar a possibilidade do aparecimento de alterações na memória, concentração e habilidades para pensar e tomar decisões.

Tais efeitos parecem ser mais graves entre jovens que tenham iniciado seu uso ainda na adolescência, dada a imaturidade do desenvolvimento neurológico.

Onde há fumaça, há dano

Assim como no consumo do tabaco, ao compararmos pessoas que não fumam àquelas que fumam maconha, os efeitos de longo prazo são danos ao sistema respiratório.

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Tal condição facilita o aparecimento de bronquite, infecções pulmonares, tosse crônica, bem como aumento de muco na região da garganta.

Alguns estudos também destacam a associação com enfisema e complicações relacionadas à DPOC (doença pulmonar obstrutiva crônica).

A fumaça da maconha contém compostos nocivos, mas em menor quantidade e variedade quando comparadas às do tabaco.

Embora o uso concomitante de maconha e do tabaco possa potencializar o aparecimento do câncer de pulmão, o uso isolado da maconha não possui associação forte com esse tipo de tumor.

A explicação para isso é que fumantes do tabaco tendem a consumir maiores quantidades de cigarros diariamente em comparação aos usuários de maconha.

Pesquisas ainda em andamento têm observado compostos antitumorais na cannabis.

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Na opinião dos especialistas consultados, de modo geral, o uso moderado de maconha apresenta menos riscos à saúde em comparação ao tabagismo crônico.

Por que as pessoas usam maconha?

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Imagem: iStock

Na maioria das vezes, busca-se o efeito euforizante, a sensação de relaxamento e até a automedicação é observada.

Além disso, a literatura médica já classificou outros motivos que levam à prática entre universitários e jovens adultos. Confira:

Conformação social (42%)

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Experimentação (29%)

Prazer (24%)

Contra-indicações

Alguns grupos populacionais são mais vulneráveis aos efeitos da cannabis e, portanto, eles devem evitá-la:

Crianças e jovens com idade inferior a 25 anos, dada a já citada imaturidade neurológica.

Gestantes (como a substância pode atravessar a placenta e ainda passar pelo leite materno, há risco para o feto que pode nascer com baixo peso. Além disso, há relatos de associação com a morte súbita fetal.

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Pessoas com histórico pessoal e familiar de psicose. A idade em que ocorre o início do uso é fator de risco para a manifestação de psicose e esquizofrenia: quanto mais jovem se é mais graves podem ser esses quadros.

Posso ficar viciado?

A mais atual literatura médica conclui que o uso diário ou quase diário —no longo prazo— pode levar a alterações na forma como o corpo e o cérebro respondem à cannabis.

Isso significa que pode haver uma resposta de tolerância, ou seja, é possível que seja necessário fumar mais maconha para obter os efeitos antes experimentados.

A literatura médica esclarece ainda que, a depender da presença de algumas situações, esse quadro pode resultar no distúrbio do uso da cannabis (cannabis use disorder), quadro que engloba uma série de comportamentos que fazem a maconha impactar negativamente a vida da pessoa.

Cerca de 1 em 10 adultos que fumam maconha podem apresentar esse quadro.

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Os adolescentes são o grupo de maior risco, embora a situação possa acontecer em todas as idades.

Homens são mais suscetíveis, mas o avanço do distúrbio é mais rápido entre mulheres.

Trauma, histórico pessoal e/ou familiar de abuso de álcool e outras drogas, renda baixa, fatores genéticos, uso de tabaco e maior sensibilidade à cannabis desde o primeiro uso são fatores associados. Os dados são dos Estados Unidos.

Apesar disso, quando comparado ao abuso de álcool, tabaco, e alguns tipos de medicamentos, o risco de abuso e dependência tende a ser relativamente pequeno e controlado entre adultos.

O risco de dependência da maconha é cerca de 9%, bem menor do que álcool (cerca de 15%) e o tabaco (cerca de 32%).

A teoria de que a maconha é uma "porta de entrada" direta para o uso de drogas mais pesadas, como cocaína ou heroína, não é embasada em evidências científicas robustas.

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Estudos brasileiros realizados pela Unifesp e UnB têm mostrado que a maconha, na verdade, pode ser uma "porta de saída" para o uso problemático de crack, por exemplo.

Maconha como remédio

A cannabis de uso medicinal é legalizada no Brasil e após a regulamentação pela Anvisa (2014) —que facilitou o acesso a seus compostos— as pesquisas com ela têm aumentado.

As evidências consolidadas de que dispomos no momento é que os canabinoides —isolados ou combinados (a sinergia entre os compostos das plantas é descrita como efeito comitiva ou entourage)— podem ser úteis em variados quadros de saúde (epilepsia, náusea e vômito consequentes à quimioterapia, perda do apetite e peso relacionados a doenças como o câncer e HIV/Aids), desde que usados em doses adequadas e sob supervisão médica.

Entre os médicos, os fitocanabinoides têm sido considerados uma opção terapêutica promissora, natural, acessível e sustentável.

No Brasil, as apresentações hoje disponíveis são óleos, gomas, gotas hidrossolúveis, spray nasal, pomadas e géis cutâneos.

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Outros achados favoráveis

Em todo o mundo, os pesquisadores continuam avaliando a eficácia e a segurança da cannabis para o alívio de outros sintomas e condições médicas. Conheça alguns deles:

Dor e redução do uso de analgésicos (especialmente opioides)

Regulação da ansiedade, melhoria do humor em quadros depressivos

Doença inflamatória intestinal

Síndrome do intestino irritável

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Distúrbios do movimento (síndrome de Tourette)

Esclerose múltipla

Regulação do sono e redução do uso de benzodiazepínicos e medicamentos Z (zolpidem, etc.)

Estresse pós-traumático

Diminuição de sintomas em quadros de autismo

Parkinson e Alzheimer

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Fibromialgia

Auxiliar no tratamento de doenças metabólicas, como diabetes e hipertensão arterial

Fontes: Paula Vinha, médica nutróloga com mestrado e doutorado em clínica médica pela FMRP (Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto) da USP, é membro da APMC (Associação Panamericana de Medicina Canabinóide), Society of Cannabis Clinicians, da ICRS (International Cannabinnoid Research Society), do Laboratório de Ciências Morfológicas e Moleculares Unicamp - divisão de medicina canabinoide e coordenadora científica da Conferência Internacional da Cannabis Medicinal. É ainda responsável técnica da Clínica Paula Vinha (SP); Sidarta Ribeiro, neurocientista e pesquisador do Hospital Universitário Onofre Lopes da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), que integra a rede Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares), professor do Instituto do Cérebro da mesma instituição e pesquisador associado do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz; Silvia Cazenave, farmacêutica, doutora em toxicologia e mestre em análise toxicológica pela Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, coordenadora do Grupo Técnico de Trabalho de Toxicologia do CRF-SP (Conselho Regional de Farmácia de São Paulo); e Victória Taveira de Castro, médica do Programa Médicos pelo Brasil e pesquisadora da Faculdade de Saúde Pública da USP. Revisão técnica: Paula Vinha.

Referências: OMS (Organização Mundial da Saúde); ACSP (Associação Canadense de Saúde Pública); National Center for Complementary and Integrative Health; Datafolha.

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