Saúde para quem vive na rua

SUS tem rede de cuidados especializada em moradores de rua; desafio é lidar com estigma e criar vínculo

Cristina Almeida Colaboração para VivaBem

Para a população em situação de rua, a prioridade na pandemia não é se proteger da covid-19. Dia após dia a meta segue a mesma de sempre: encontrar comida e um local para dormir. Não há tempo para focar na saúde. Mas há quem dela se ocupe. E, geralmente, são entes públicos e privados que, de olho na vulnerabilidade do grupo, sabem que viver na rua é causa e consequência de muitas doenças.

Entre essas pessoas, a expectativa de vida é baixa, até 30 anos a menos do que a da população brasileira em geral —que vive, em média, 78,6 anos. Já a mortalidade é de cinco a dez vezes maior e, muitas vezes, ocorre por doenças preveníveis ou crônicas para as quais há tratamento. Apesar disso, estar nas ruas não retira o direito de essas pessoas terem acesso universal à saúde, garantido pela Constituição.

A elas também são garantidos os direitos à igualdade, equidade, dignidade humana e atendimento humanizado, além do respeito à vida, cidadania, condições sociais, diferenças de origem, raça, idade, gênero, orientação sexual e religiosa.

De olho na paulatina desvinculação dos moradores de rua dessas prerrogativas, movimentos comunitários passaram a reivindicar maior atenção à saúde dessa população no início da década de 2000.

O resultado dessas iniciativas foi o nascimento de uma estratégia de saúde pública denominada Política Nacional para a População em Situação de Rua. Dela, surgiram os Consultórios na Rua —serviço que atende de modo itinerante e in loco crianças, adultos e idosos e tem como objetivo ser uma ponte que leva os moradores de rua às redes de cuidados do SUS (Sistema Único de Saúde). Apesar disso, os desafios persistem.

Quem são essas pessoas?

C. tinha um problema no úmero (osso do braço) que fez com que o tamanho de seus braços fosse diferente. Tal condição não impediu que ele se especializasse na customização de carros. Um dia, a coluna começou a incomodar. Contribuinte da Previdência Social por mais de 20 anos, C. logo se aposentou por invalidez. Mas ele seguiu trabalhando, abriu a própria empresa, financiou uma casa... Seu negócio cresceu tanto que ele até apareceu na TV.

A roda da fortuna girou. O especialista em veículos customizados teve seu benefício cancelado, o trabalho minguou e ele foi despejado de sua casa. Quando se deu conta, C. estava na rua. Essa é a história de um "paciente de rua" de Mário Guimarães, neurologista fundador do projeto Médicos de Rua, hoje Médicos do Mundo —entidade privada que vive de doações e que, em cinco anos, já prestou 128 mil atendimentos médicos multidisciplinares e sociais a pessoas em situação de vulnerabilidade.

O relato de Guimarães confirma as estatísticas. As principais causas para alguém ir para as ruas são a crise econômica, a falta de emprego e o aumento da pobreza. A esses fatores se somam problemas pessoais que, por ordem de maior ocorrência são: alcoolismo e desavenças familiares.

Entre os moradores de ruas há mulheres, crianças, idosos, mas o grupo é formado, majoritariamente, por homens jovens, que têm de 24 a 44 anos, e se declaram afrodescendentes, exatamente como C..

Principais fatores de risco para a saúde da população em situação de rua

  • 1

    Violência

  • 2

    Alimentação irregular e sem as devidas condições de higiene

  • 3

    Falta de acesso a água tratada

  • 4

    Privação de sono

  • 5

    Privação de afeto

  • 6

    Variações climáticas

  • 7

    Dificuldade de acesso aos serviços de saúde

Rua: causa e consequência

O Ministério da Saúde define a população em situação de rua como um grupo heterogêneo que tem em comum a extrema pobreza, vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e falta de moradia, além do uso —temporário ou permanente— de vias públicas e áreas degradadas como casa e sustento, e que ainda utiliza unidades de acolhimento para pernoite temporário ou moradia provisória.

Dados do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) mostram que, de setembro de 2012 a março de 2020, houve um crescimento de 140% dessa população no Brasil, o que, naquela data, correspondia a 221.869 pessoas em todo o país. Esse é o levantamento nacional mais recente.

Mais da metade dessa população se concentrava no Sudeste (56,2%) e vivencia uma carga desproporcional de doenças, sofrimento e invalidez, porque viver na rua é considerado causa e consequência de doenças, dada a maior exposição a determinados fatores de risco.

Hipertensão, doenças psiquiátricas ou mentais, HIV/Aids, problemas de visão e cegueira são frequentes nessa população, assim como o uso abusivo de álcool e drogas, problemas odontológicos (algumas pessoas já perderam todos os dentes), dermatológicos e gastrointestinais.

Na maioria das vezes, a busca por ajuda médica só acontece na hora de uma emergência. As razões para isso são muitas e todas se relacionam ao fato de esses indivíduos vivenciarem um processo de exclusão —e eles ainda têm de lidar com o estigma, a desumanização e a segregação. Essas são as barreiras que precisam superar antes de passarem, sozinhos, por uma triagem médica.

Ir aonde o povo está

Os Consultórios na Rua, iniciativa consolidada do SUS, têm minimizado tais circunstâncias. Nascidos da Política Nacional para a Pessoa em Situação de Rua, eles proveem serviços médicos, sociais e assistência à saúde mental nos locais onde essas pessoas se concentram. O objetivo é ser um elo entre elas e os serviços das redes de cuidado, além de construir vínculos.

A enfermeira Maria Luiza Franco Garcia, da Área Técnica da Atenção Básica da Prefeitura de São Paulo, conta que, na prática, o serviço funciona diariamente, no caso da capital paulista, —até nos finais de semana e feriados— e envolve 10 secretarias, entre elas, a SMADS (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social) e a de Direitos Humanos, além de vários parceiros como o Bompar (Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto).

Na cidade de São Paulo, as equipes se dividem conforme a necessidade, porque a situação de rua difere a depender da região. Hoje, são 26 grupos, distribuídos pelas regiões centro (10), sudeste (7), norte (3), leste (2), oeste (2) e sul (2). Os grupos contam com médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, assistente social, psicólogo, agentes de saúde de rua, sociais e administrativos e auxiliar de saúde bucal.

Como é o atendimento no consultório de rua

Por serem itinerantes, os profissionais são treinados para compreender as peculiaridades de cada local —por exemplo, onde a pessoa em situação de rua dorme e se alimenta, quais são os hábitos de higiene—, além das situações que possam favorecer ou dificultar trabalhos e ações que devam ser realizados, entre eles, a escuta qualificada —lembrando que há assistentes sociais e psicólogos nas equipes.

Na prática, isso basicamente é se aproximar dos moradores de rua iniciando um diálogo e já deixar bem claro o objetivo do atendimento, pois muitas vezes pode haver receio por parte deles de que a abordagem se trata de algum tipo de investigação: alguns moradores de rua temem ações da Justiça ou da polícia, outros perderam documentos ou fugiram de casa para escapar de algum tipo de violência.

Uma vez esclarecido que a proposta é oferecer atendimento médico e um mínimo de dignidade em saúde, e tão logo os cuidados sejam aceitos, cada pessoa é avaliada para identificação da maior ou menor complexidade de seu quadro: os profissionais de saúde apalpam a barriga para sentir como estão órgãos internos, escutam o coração, analisam boca, ouvidos, garganta e a pele, para identificar feridas graves e outros problemas. Os mais simples são resolvidos no local —com curativos, por exemplo.

Quando necessário, a pessoa é acompanhada até uma unidade de emergência para intervenções imediatas e/ou internação, que podem ocorrer em hospitais municipais, estaduais ou federais da cidade.

A UBS (Unidade Básica de Saúde) mais próxima é a porta de entrada e o centro de comunicação da Rede de Atenção à Saúde. As equipes ainda contam com apoio de UPAs (Unidades de Pronto-Atendimento), AMA (Assistência Médica Ambulatorial) e do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência).

O sucesso do trabalho dos grupos dos Consultórios na Rua é formar vínculos com esses pacientes para aumentar a chance de que haja acompanhamento contínuo (consultas, orientações, curativos, medicações, vacinação e outros procedimentos).

Muitos aderem a esse plano de acompanhamento da saúde, mas boa parte pode se perde porque não aceita o cuidado, resiste à visita à UBS (por vezes porque se sentem inadequados), ou simplesmente porque se muda e vai morar em ruas de outras regiões da cidade.

Apesar das dificuldades, o acompanhamento vem melhorando. Antes da pandemia, quando o número de pessoas em situação de rua na capital paulista era de cerca de 25 mil, os usuários cadastrados somavam 8.000 (32%). De acordo com o Censo da População em Situação de Rua da Cidade de São Paulo, essa população aumentou para quase 32 mil em 2021. O número de cadastrados entre abril de 2020 a janeiro de 2022 mais que dobrou, e é de cerca de 17 mil atualmente (53%).

E a covid-19?

Diante da recomendação "fique em casa" como forma de prevenção da covid, o pesquisador Bruno Eduardo Freitas Honorato, professor de planejamento governamental, passou a pesquisar possíveis medidas de proteção para a população em situação de rua. "Estudos mais recentes têm mostrado que a melhor saída é a rápida disponibilidade de moradias temporárias para pequenos grupos", diz.

A Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte, que também tem seu Consultório na Rua, por meio de outro projeto, o BH de Mãos Dadas —que atua junto aos moradores de rua e a outros grupos vulneráveis— encontrou solução semelhante. Desde 2020 oferece serviço emergencial e temporário de acolhimento a pessoas com sintomas respiratórios (tosse, coriza, espirros).

"A ideia é oferecer atendimento digno durante o período necessário de isolamento, com todo o cuidado possível, o que inclui internação em UTI", explica Fabiana Ribeiro Silva, gerente da Atenção Primária à Saúde em BH. Até esta data, foram 1.100 pessoas acolhidas, sendo que 23% delas seguiram com o acompanhamento médico (percentual que mostra que é realmente um desafio manter essa população sob cuidados contínuos).

Em São Paulo, a testagem para covid realizada pela equipe da Médicos do Mundo encontrou poucos infectados. "Suspeitamos que o grupo, além de jovem, de certo modo, já está isolado. Eles se aglomeram entre si, mas, muitos ficam sós e não entram em contato com os transeuntes. Na verdade, são as pessoas que deles se afastam", afirma Guimarães.

Casos complexos, soluções complexas

Erika Plascak Jorge, recém-formada e residente de infectologia do Hospital Santa Marcelina (SP), integrou, por mais de um ano, uma equipe do Consultório na Rua, e diz ter se surpreendido positivamente. Enquanto a sua formação colocava o médico no centro de tudo, na rua, as assistências social e psicológica eram mais relevantes.

"Afinal, alguns vivem assim há três gerações", comenta. A percepção da médica se explica pelo fato de que 100% dos casos desses pacientes são considerados complexos, isto é, requerem atuação interssetorial.

"O Consultório na Rua é uma alternativa para melhorar a qualidade de vida da população em situação de rua, mas é também uma lente de aumento para os problemas das políticas públicas", fala Valeska Antunes, coordenadora da residência de medicina de família e comunidade da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz.

Tendo atuado por 10 anos nas ruas da zona norte do Rio, Antunes destaca que, "antes da saúde, esses indivíduos têm como primeiras necessidades moradia e emprego. E as soluções para isso requerem políticas complexas".

No Rio, as sete equipes existentes se dividem entre as zonas centro, norte e oeste e a assistência oferecida tem como resposta a rápida formação de vínculos. Isso se conecta a outro ponto comum relatado pelas médicas: mesmo em regiões críticas, ambas jamais se sentiram ameaçadas.

Serviços oferecidos pelo SUS

  • ATENÇÃO PRIMÁRIA

    Orientações sobre prevenção de doenças, consultas e exames rotineiros, com ou sem apoio de UBS (Unidade Básica de Saúde) ou AMA (Assistência Médica Ambulatorial), a depender do quadro

  • ATENÇÃO SECUNDÁRIA

    Serviços e exames especializados (ortopedia, neurologia, endoscopia), apoio diagnóstico e terapêutico, além de atendimento de urgência e emergência (UPA, Samu e AMA)

  • ATENÇÃO TERCIÁRIA

    Atendimento a casos mais complicados que exigem hospitalização ou procedimentos mais complexos, como um câncer

  • ATENÇÃO PSICOSSOCIAL

    Por meio do CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), são oferecidos tratamentos dos transtornos mentais, psicoses e neuroses graves, com acompanhamento e reinserção social

Mais reportagens especiais

Método clínico centrado na pessoa permite ao paciente ser protagonista

Ler mais

Doação de órgãos: da morte cerebral até a chegada em um novo corpo

Ler mais

Insulina faz 100 anos: hormônio evoluiu e marcou o controle do diabetes

Ler mais

Quem troca o dia pela noite trava uma luta contra o próprio organismo

Ler mais
Topo