O peso do psicológico

Entenda por que o autoconhecimento é um pilar importante no tratamento contra a obesidade

Cristina Almeida Colaboração para o VivaBem Guilherme Zamarioli/UOL

Em um episódio da série "Segura a onda", disponível na HBO, o personagem principal, Larry David, quer saber o peso dos amigos que o acompanharão em um casamento fora da cidade. Como ele fretara um táxi aéreo, a informação visava a segurança dos passageiros, já que a aeronave tinha limitada capacidade de carga. O fato é que ninguém respondeu ao seu pedido, que foi considerado indiscreto.

A comédia nos remete ao estigma e às atitudes discriminatórias relacionadas ao peso das pessoas, cujo contraponto não tem nada de engraçado, ou seja, as repetidas manifestações de que a obesidade é igual à preguiça, um pecado, um vício que revela negligência, desleixo, morosidade de causa orgânica ou psíquica que leva à inação.

O que tem prevalecido, felizmente, é a ciência. Obesidade e atividade física têm, sim, um impacto na função neurocognitiva. Contudo, a primeira não é apenas o resultado da falta da segunda, assim como ser magro ou malhado não significa, necessariamente, ter saúde. Ter uma visão mais ampla sobre os complexos sistemas que envolvem a saúde do corpo e da mente permite uma maior compreensão de como manter um peso saudável pode ser desafiador para alguns indivíduos.

Guilherme Zamarioli/UOL
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Obesidade: uma porta de entrada para alguns problemas

Que fique claro: ninguém está acima do peso porque quer. E, até o momento, nem mesmo os cientistas têm uma resposta definitiva para o crescimento exponencial da obesidade nas últimas três décadas. A preocupação da comunidade médica é legítima. Os quilos a mais são a porta de entrada para uma série de problemas de saúde e estima-se que logo eles estarão influenciando negativamente a expectativa de vida em todo o mundo.

De forma genérica a obesidade é conceituada como o excesso de gordura corporal que traz danos à saúde. E para categorizá-la de forma mais clara, a OMS (Organização Mundial da Saúde) a define por meio de um cálculo matemático que divide o peso (em quilos) de uma pessoa por sua estatura (metros) elevada ao quadrado. O resultado dessa operação é chamado de IMC (Índice de Massa Corporal), que respeita a seguinte classificação:

  • Valores entre 18,5 até 25 indicam peso normal;
  • Acima de 25 revelam sobrepeso;
  • Além dos 30 considera-se obesidade.

A partir desses parâmetros, as receitas para manter a balança sob controle são muitas e todas elas se baseiam na mesma premissa —para perder peso é preciso encontrar o perfeito equilíbrio entre o que se come e o que se gasta. Parece simples? Não é. A forma como cada indivíduo acumula gordura decorre da interação de vários fatores. A lista é extensa. No topo dela está a genética, responsável por cerca de 70% do modo como os genes atuam no acúmulo da adiposidade, na forma como ela se distribui pelo corpo e até na estabilização do peso. Os outros elementos relacionados são:

  • Gênero;
  • Condições pré-natais e de desenvolvimento;
  • Tipo de dieta;
  • Ambiente;
  • Ação hormonal;
  • Condições psicossociais.
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O papel da mente

Propor-se a adotar novos hábitos de vida que incluam atividade física e dieta equilibrada necessariamente vai ter de passar por uma rede neural responsável pelo controle da execução de ações. Situada no córtex frontal, essa área do cérebro tem a função de ajudar nas tomadas de decisão sobre o que comer ou não, quando e como exercitar-se ou não.

Em tese, todo ser humano tem a capacidade de autorregular-se, evitando "tentações" a partir do conhecimento das consequências de seu comportamento, bem como do entendimento do resultado benéfico dessa atitude. Por outro lado, tem também a habilidade de desconsiderar tais fatores, deixando-se levar pelos impulsos.

Entre as pessoas com obesidade há um maior interesse por alimentos, além de níveis de satisfação que requerem maiores porções para atingi-la, assim como uma menor atividade cerebral na área de controle de impulsos. A explicação é de Maria Edna de Melo, endocrinologista, chefe da Liga de Obesidade Infantil do HC-FMUSP. "O cérebro de quem tem obesidade é diferente, mas não se sabe ainda se isso é causa ou se é consequência do problema", acrescenta a especialista.

Os dados conhecidos até o momento sugerem que, nesse grupo, os processos que levam a fazer escolhas têm menos a ver com decisões conscientes, e mais com fatores biológicos que levariam a uma "falha" na capacidade de autorregulação. Essas conclusões foram publicadas no periódico American Journal of Psychotherapy.

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A melhor motivação

O desafio de manter um peso equilibrado passa ainda pela motivação, que é definida como o conjunto de processos que dão ao comportamento intensidade, direção e forma no desenvolvimento da atividade individual. E ela pode ser extrínseca: faz-se algo para evitar punição ou para ganhar algo (prêmio ou recompensa) ou intrínseca: faz-se algo porque assim se deseja —é a chamada automotivação.

A primeira pode facilitar a mudança de hábitos, especialmente quando os esforços mostram resultados rapidamente. O senão é que essa estratégia não cultiva a autodisciplina. Uma vez alcançada a meta e cessado o estímulo, volta-se ao estado anterior. Limitada pelo tempo, a motivação extrínseca é desfavorável à obesidade, já que ela é considerada uma enfermidade crônica.

Um plano eficaz de emagrecimento deve considerar o uso de ferramentas capazes de estimular a motivação intrínseca. E a melhor forma de evitar a autossabotagem é o monitoramento pessoal e o de uma equipe multiprofissional. É assim que comportamentos que podem sabotar o tratamento são contidos. A ideia é reforçar a autoeficácia —aquela sensação de que se é capaz de enfrentar desafios (mesmo que seja driblar a vontade de faltar na academia).

Isso explica porque não existe uma receita pronta para perder peso. Em cada fase do processo, a abordagem será diferente e individualizada Aléxei Volaco, professor adjunto da disciplina de Endocrinologia da Faculdade de Medicina da PUCPR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)

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O signo da obesidade

Existiria uma personalidade típica do obeso? Há mais de 50 anos os cientistas tentam responder a essa pergunta e o que se sabe até o momento é que não há um perfil de indivíduos com peso não saudável, nem mesmo entre quem tem indicação para a cirurgia bariátrica. Apesar disso, é comum, nesse grupo, os distúrbios de imagem e alimentares, especialmente a compulsão alimentar. Entre as pessoas que procuram ajuda médica para tratamento da obesidade, observam-se as seguintes características:

  • Maior prevalência de ansiedade e depressão;
  • Maior sofrimento entre as mulheres do que homens, especialmente pelo estigma;
  • Isolamento social;
  • Baixa autoestima;
  • Maior tendência a ter emoções negativas, principalmente entre os mais impulsivos e competitivos.

Os registros históricos sobre a discriminação e o preconceito têm a idade da Bíblia. E o estigma da obesidade está presente em todas as situações da vida —trabalho, escola, atendimento médico, família, relações pessoais, entre outras. Os episódios de ideação e tentativa de suicídio, como resposta ao bullying sofrido nas redes sociais só cresce entre os jovens.

Só para se ter uma ideia, um adolescente com IMC alto tem níveis de qualidade de vida similares a de pacientes de câncer da mesma faixa etária, com a ressalva de que estes últimos recebem todo tipo de atenção. O estudo foi publicado no prestigioso Journal of the American Medical Association.

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Sintomas psiquiátricos

Na contramão dessas constatações, movimentos em direção à valorização da autoimagem, principalmente entre as mulheres, buscam equilibrar um cenário onde a motivação para ter um peso saudável, participar de atividades de promoção da saúde precisam passar, antes, pela coragem de superar o estigma.

Diante dessas circunstâncias, a hipótese dos cientistas era a de que indivíduos com obesidade apresentariam sintomas psiquiátricos mais evidentes. Contudo, os achados das pesquisas sobre o assunto revelam que esses sinais não são maiores do que os apresentados pelas pessoas em geral, independentemente do IMC.

Por outro lado, quando os estudos se voltaram para a dieta, o estresse a ela relacionado mostrou ser um fator desencadeante de uma maior vulnerabilidade para o comer emocional, principalmente entre as mulheres. Tais conclusões foram publicadas no jornal médico Obesity Research. Apesar disso, os especialistas são taxativos: a maioria das pessoas com sobrepeso ou obesas não apresentam distúrbios de humor.

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Para que avaliação psicológica?

O tratamento da obesidade deve ser sempre individualizado e envolver uma equipe multidisciplinar. Isso porque cada pessoa tem sua história, sua personalidade, angústias e decepções vividas no processo que leva à meta do peso saudável. Ao estabelecer uma estratégia terapêutica, médico e paciente têm de considerar todos esses aspectos para encontrar as melhores práticas para cada indivíduo.

A primeira opção, porém, nunca será a indicação de cirurgia bariátrica —nos casos em que o IMC está acima de 35. Contudo, quando se decide por ela, a intervenção representa uma tentativa de virar a mesa, resolver um problema que, a essa altura, já está colocando em risco a vida do paciente, dadas as sempre presentes comorbidades.

A cirurgia bariátrica tem um alto custo, e não só econômico. A avaliação psicológica, nesses casos, é medida legal e obrigatória regulada pelo Ministério da Saúde e pelo CFM (Conselho Federal de Medicina). A razão para esse rigor é que é preciso atestar a capacidade de o paciente assimilar todos os efeitos da bariátrica:

  • Mudança rápida e drástica da imagem corporal e do estilo de vida;
  • Reeducação alimentar;
  • Vômitos constantes;
  • Anemia;
  • Suplementação vitamínica, entre outros aspectos.

A medida ainda é útil para se identificar quadros psiquiátricos que precisam ser controlados antes da intervenção.

Este não é um procedimento que se faz por impulso. A partir dele, a rotina, os costumes, o hábito de vida e a alimentação vão mudar. A cirurgia não queima essa etapa, é o paciente que terá de se adaptar Luiz Sérgio Nassif, médico responsável pelo Serviço de Cirurgia Bariátrica da Santa Casa de Curitiba

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A melhor terapia

Diante de tantas mudanças, o melhor é investir no autoconhecimento, na construção de força e repertório para enfrentar a nova fase da vida. A Terapia Cognitivo Comportamental e a Interpessoal são de grande ajuda nesses casos —focadas nas questões práticas, elas fornecem elementos capazes de potencializar o controle de atitudes que possam sabotar o tratamento.

No entanto, os especialistas no assunto entendem que a terapia ideal será aquela com a qual o paciente melhor se identificar. "A pessoa terá de enfrentar uma transformação, frustrações [ela terá vontade de comer, mas não conseguirá; terá emagrecido para reatar com um antigo amor, e isso pode não acontecer]. Se a ansiedade e a atitude compulsiva continuam, o paciente terá de lidar com isso", fala Mari Ângela Calderari Oliveira, psicóloga que atua no Núcleo de Prática em Psicologia da PUCPR e na avaliação o pré e pós-operatório da cirurgia bariátrica.

Oliveira ressalta que a prática mostrou que o papel da família, nesse contexto, é essencial. Afinal, quem vai cuidar da pessoa no pós-operatório, como os familiares vão lidar com a nova dinâmica da casa? Assim, a Terapia Sistêmica --que tem raízes na Terapia Familiar, tem se mostrado bastante eficaz porque envolve todo o grupo. Outra estratégia promissora é a Entrevista Motivacional, que trabalha a motivação e auxilia a lidar com a ambivalência criada pela oportunidade de mudar a vida.
Seja lá como for, buscar a ajuda de um psicólogo pode ser o primeiro passo em direção à meta de alcançar o peso saudável.

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Riscos da falta de preparo psicológico

As cirurgias bariátricas têm altos índices de aproveitamento porque há muito controle das questões clínicas. Apesar disso, as mudanças de vida, para o paciente, são drásticas. E mesmo os que foram considerados aptos para enfrentar o procedimento poderão ser eventualmente surpreendidos pelo novo desafio.

"Quem não se prepara, vai usar de todas as artimanhas para comer como antes. Assim, o maior risco é o reganho de peso", diz Magda Rosa Ramos da Cruz, nutricionista, professora da Faculdade de Nutrição da PUCPR atuando na Clínica de Nutrição voltada para pacientes bariátricos. Ela relata que, por vezes, a compulsão alimentar persiste, sem falar da frustração por não poder comer como no passado, o que leva a uma compensação: o consumo de álcool. Esses casos exigem a intervenção de um psiquiatra. A boa notícia é que relatos de depressão que tiveram como desfecho o suicídio são raros.

Na maioria das vezes, a cirurgia bariátrica repercute favoravelmente na saúde física e psíquica. As mudanças são, sim, importantes, mas têm como recompensa a vantagem de fazer coisas que, antes, pareciam impossíveis —sentar-se no chão com os filhos, aproveitar uma viagem caminhando com a família sem se sentir cansado. A obesidade, enfim, estará sob controle, mas não é página virada. A aderência aos encontros periódicos com uma equipe multidisciplinar aumentam as chances de a sensação de bem-estar durar no tempo. A essa altura, a motivação para o autocuidado estará em alta.

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