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Alexandre da Silva

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Olhares, comunicação e envelhecimento: tudo sempre está em transformação

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Alexandre da Silva

Alexandre é fisioterapeuta, especialista em gerontologia e mestre em reabilitação pela Unifesp, doutor em saúde pública pela USP e professor da Faculdade de Medicina de Jundiaí. É também membro do Centro Internacional de Longevidade e dos grupos de trabalho Racismo e Saúde e Envelhecimento e Saúde Coletiva, ambos da Abrasco.

Colunista do UOL

03/10/2022 04h00

Desde muito cedo, aprendemos que podemos usar as linguagens verbais e não verbais para ter uma comunicação efetiva. Quantas vezes já percebemos o quanto o nosso corpo é capaz de transmitir uma mensagem?

Com a pandemia, uma das habilidades que aprimoramos foi a da comunicação a partir do olhar. Deixamos de entender o outro apenas pelas palavras pronunciadas para aprimorar uma outra forma de aproximação.

O uso das máscaras nos permitiu essa forma de nos comunicar com uma outra pessoa e entender seus sentimentos que, muitas vezes, era de angústia, medo, alegria, choro ou espanto com a presença de um vírus incapaz de ser visto a olho nu, mas com repercussões que atravessaram as casas fechadas e nossos corpos, aparentemente protegidos, para a invasão desse agente que, em quase 700 mil vezes, foi letal para a vida de brasileiros e brasileiras.

E essa comunicação por meio do olhar já começa na infância. As crianças têm uma riqueza de gestos faciais capazes de expressar a fome, o medo, a alegria e até a vontade de dormir na cama dos pais ou da irmã mais velha.

E ainda que não houvesse a pandemia, com o passar dos anos, também vamos aprimorando o nosso olhar e a comunicação que fazemos a partir dele. Começou lá atrás, entre mãe e bebê, e vai se aprimorando quando, já na fase adulta, filhos e filhas já sabem o que uma mãe quer dizer só pelo seu olhar.

São olhos que, por mais que sejam construídos com muita ternura e afeto, não deixa de mandar aquele recado:

- Em casa a gente conversa!

Na convivência com companheiros, companheiras, amigos e amigas, a duração desses relacionamentos também aprimora a comunicação que se dá por gestos milimétricos de sobrancelhas, de olhos mais abertos ou da combinação de todos eles.

A parceria dessas pessoas que envelhecem juntas parece ser a oportunidade para a criação de um idioma particular que, mesmo em um ambiente cheio de pessoas, as permite confidenciar segredos usando essa linguagem super aprimorada que pode ter a companhia de alguns movimentos manuais:

- Eu falei que ia dar errado!

Essa expressão pode ser traduzida pela combinação de gestos envolvendo olhos, sobrancelhas, bochechas e alguns dedos de uma só mão!

Na fase adulta, tentamos racionalizar toda aquela riqueza sentimental transmitida pelos olhares para a nossa linguagem oral. Tentamos explicar, sempre por meio das palavras, o que estamos sentindo. E, não satisfeitos, usamos a escrita para também registrar tudo aquilo que poderia ser comunicado por nossos corpos.

Atualmente, muitas redes sociais nos oferecem recursos adicionais como memes e emojis que auxiliam na transmissão de sentimentos sem o uso de tantas de palavras escritas ou mensagens de áudio.

E quando chegamos na velhice, não são as rugas que vão deixar nossos olhares menos expressivos. O que afeta olhares de quem envelhece continua a ser o foco da comunicação na linguagem oral e escrita. Criam-se contratos e mais contratos para atestarem acordos.

Perdeu-se o poder da palavra e ninguém valoriza tanto o que está apalavrado entre duas ou mais pessoas. E, desta forma, não é incomum que olhares também deixem de ter sua importância. Perde-se, dia após dia, a capacidade de se olhar, de chegar a acordos pelo olhar de respeito e de afeto de uma pessoa pela outra.

As pessoas mais velhas, em comparação às crianças, olham-se menos no espelho e não acham tão engraçado e belo o que veem e não ousam fazer uma careta ou um novo gesto para se acharem engraçadas ou para diluírem uma raiva ou um sentimento de tristeza.

É curioso e, de certa forma, preocupante a nossa incapacidade de se olhar no espelho. Temos a dificuldade de nos conectar com essa pessoa que a gente se depara! É um estranhamento que é demonstrado pela fisionomia e pelas marcas de expressão que já não condizem com o rosto daquela pessoa de trinta anos atrás.

E quando olhares expressam as emoções que a gente não gostaria de ver ou de apresentar?

E quanto a essa pessoa que envelhece sendo um sujeito vivo, com atitudes, participação social e autonomia sente-se menos "pessoa", menos "gente"?

É importante acreditar que essa pessoa sempre esteve ali, que nunca morrerá enquanto existir um propósito de vida pulsando dentro dela e, preferencialmente, com menos olhares que discriminam seu cabelo mais grisalho e um olhar já mais maduro, porém cansado de sofrer ou ainda com vontade de conhecer mais do mundo e das suas maravilhas naturais.

Há também olhares de reencontro, de encontro com um novo propósito de vida, com a pessoa que há muito tempo estava distante, do encontro com um sorriso inesperado de uma pessoa desconhecida e de um olhar para a saúde que está de volta. Tem também o olhar de reencontro com o trabalho, pois muitas pessoas só conseguem se ver plenas quando conseguem exercer alguma atividade ocupacional.

O sujeito nunca morre e seu olhar é uma forma de demonstrar essa vivacidade. Um olhar pode sofrer grandes modificações, sem jamais perder sua essência. Por mais que ocorram mudanças fisiológicas e anatômicas nos olhos de quem envelhece, a essência do olhar não deixará de existir!

Dessa forma, os olhares que as outras pessoas têm a nosso respeito nos constituem e também poderão nos definir como pessoas mais velhas, plenas e felizes ou, quando maldosos e mal interpretados, nos definir como pessoas mais velhas, incompletas, insatisfeitas e com uma baixa autoestima.

Portanto, olhe-se mais no espelho e veja que pessoa extraordinária você é! Não tenha medo ou vergonha do que verá! Contemple as mudanças que ocorrem diariamente no seu corpo e lembre-se de que sempre foi assim: você sempre muda, dia após dia!

A transmissão de emoções a partir dos nossos gestos corporais pode ser mais bem compreendida se comparada ao resultado obtido por um belo poema cujas palavras foram muito bem escolhidas e encaixadas nas suas estrofes.

Cabe a você saber que isso tudo é um dos maiores poderes que temos: o da transformação!