Os micro-organismos do seu intestino podem influenciar na memória
Quem assistiu à série "Dark", da Netflix, certamente teve dor de cabeça tentando entender a confusão de cada episódio. A série envolve relativismo temporal (como se fossem três mundos separados pelo tempo), multiversos e buracos de minhoca, em que os personagens, à primeira vista, parecem soltos, independentes. No entanto, com o avançar da narrativa, tudo acaba sendo conectado.
Bom, você deve estar se perguntando: como é que Dark se relaciona com as bactérias do meu intestino? Nossos sistemas biológicos parecem mundos diferentes, funcionando à sua maneira, controlados pelo cérebro. É aí que a gente se engana. Todos, ou quase todos os nossos sistemas se conectam por meio de processos extremamente complexos e quando assistimos a tudo que ocorre em nosso corpo em uma tela maior, certamente a enxaqueca é mais intensa que em "Dark".
Um exemplo claro dessa conexão começa com a nossa interação, na maioria das vezes amigável, com os ecossistemas microbianos, especialmente os do intestino. Os micro-organismos intestinais, muitas vezes chamados de microbiota intestinal, exercem uma influência marcante no hospedeiro (nós), tanto no equilíbrio regulatório biológico, chamado de homeostase, como no desenvolvimento de doenças.
Se fecharmos os olhos e dermos um empurrãozinho na imaginação, é possível traçar um paralelo entre a microbiota intestinal e o funcionamento dos nossos sistemas biológicos com a conexão temporal em "Dark". Ou seja, parece que a nossa microbiota intestinal é a linha mestra da nossa trama biológica. "O tempo não influencia apenas o futuro: o futuro também influencia o passado. É igual à questão do ovo ou da galinha. Eles estão conectados", afirma o personagem H.G. Tannhaus, relojoeiro de Winden, cidade alemã fictícia onde se passa a série.
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Nos últimos anos surgiram novas tecnologias, o que tornou viável um entendimento mais detalhado das comunidades e ecossistemas microbianos, e também das suas relações com os nossos mundos biológicos. Fatores externos (como consumo de antibióticos, dieta inadequada, estresse psicológico e físico), bem como os fatores internos individuais podem induzir a disbiose intestinal (desequilíbrio da flora bacteriana intestinal, com redução das bactérias "boas" e aumento das "ruins").
A disbiose pode prejudicar o funcionamento normal da microbiota intestinal na manutenção do bem-estar e, potencialmente, produzir substâncias prejudiciais à saúde, desencadeando doenças. Por exemplo, já foram relatadas associações entre alterações da microbiota intestinal com doenças autoimunes (como o lúpus eritematoso sistêmico, artrite reumatoide, diabetes tipo 1), doenças cardiovasculares (como hipertensão e aterosclerose), com doenças neuropsiquiátricas (como Alzheimer, Parkinson e transtorno depressivo), bem como com a doença renal crônica.
A ligação entre obesidade e alterações da microbiota intestinal faz parte de uma história científica recente, mas que está sendo bem estudada. Nos últimos anos, a personagem principal desse nosso folhetim biológico, a microbiota intestinal, também tem sido ligada a transtornos cognitivos, como o comprometimento na aprendizagem e memória. Ou seja, seres invisíveis em nós hospedados que, ao trabalharem, produzem metabólitos que influenciam nosso poder cognitivo.
Em sujeitos obesos, certas famílias de bactérias têm sido associadas a prejuízos de alguns domínios cognitivos. Por exemplo, mudanças em algumas famílias de bactérias intestinais em obesos foram associadas a um pior desempenho em um teste neuropsicológico. Através da apresentação de uma figura, os pesquisadores solicitaram aos voluntários copiá-la com a maior precisão possível. E, de tempos em tempos, utilizando a memória, são estimulados a produzir novas cópias sem a figura em mãos. Este teste avalia várias funções cognitivas, como habilidade de construção visual-espacial, memória visual (imediata e atrasada), função motora e componentes da função executiva (planejamento e memória de trabalho).
Como quando abrimos uma caixa cheia de peças de um quebra-cabeça, os pesquisadores de um estudo recém-publicado no Cell Metabolism, um periódico de grande relevância científica, tinham na mesa: alterações na microbiota intestinal, obesidade, transtornos cognitivos e memória. Então, formularam a hipótese de que o comprometimento da memória estaria associado à obesidade e a um perfil específico do microbioma intestinal.
O estudo usou camundongos e seres humanos (obesos e não obesos) para testar essas possíveis conexões. E muitos métodos avançados de pesquisa foram recrutados para apresentarem os personagens dessa história. Foram realizados ressonância magnética, testes neuropsicológicos, análises moleculares do sangue e fezes e até o transplante da microbiota fecal de humanos para camundongos.
A partir dos experimentos, os cientistas demonstraram ecossistemas característicos associados a domínios cognitivos, como a memória. Várias espécies do filo Firmicutes estavam ligados com bons resultados nos testes de memória, enquanto as espécies dos filos Bacteroidetes e Proteobacteria apresentaram, principalmente, relações negativas com os resultados desses testes.
Os autores ainda demonstraram que funções bacterianas relacionadas ao metabolismo da vitamina B, como riboflavina, vitamina B6, ácido fólico e vitamina B12 (compostos essenciais para o bom funcionamento de muitos dos nossos sistemas biológicos), foram associados a boas pontuações nos testes de memória. Esses resultados sugerem que quando esses compostos essenciais são mais metabolizados por algumas bactérias, a capacidade de memória está melhor.
Em indivíduos obesos e não obesos, as conexões entre algumas estruturas do cérebro, com a composição do microbioma intestinal e com as funções bacterianas, parecem acontecer de formas diferentes. Ou seja, alguns gêneros de bactérias estavam associadas ao aumento da região do cérebro associada à memória em indivíduos não obesos; porém, tal associação não foi observada em obesos.
Quando os pesquisadores administraram a microbiota intestinal de indivíduos com alta e baixa pontuação nos testes de memória em camundongos, observaram que os roedores que receberam a microbiota dos sujeitos com alta pontuação nos testes também apresentaram melhores respostas nas avaliações.
Em linhas gerais, esse estudo apontou para a existência de um ecossistema de bactérias que está simultaneamente ligado à memória verbal e de trabalho, bem como ao volume das áreas do encéfalo envolvidas nessas características. Tais descobertas sugerem um ecossistema hospedeiro que se conecta à fisiologia do cérebro.
Esses mundos biológicos parecem tão intrinsecamente ligados que a microbiota intestinal copiou traços de memória de humanos e estes foram passados para camundongos. E o transplante da microbiota de seres humanos obesos (que apresentavam baixas pontuações nos testes de memória) levou à diminuição dos aspectos relacionados a memória em camundongos.
Dessa forma, como fossem personagens de "Dark", em que o tempo (os mundos) parece ser o elo da série, nossos mundos biológicos parecem conectados pela composição da microbiota intestinal. Como dito por Noah, um dos personagens principais da trama, "Ontem, hoje e amanhã não são consecutivos, eles estão conectados em um círculo sem fim. Tudo está conectado."
* Bruno Rodrigues é doutor em ciências pela Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) e professor da Faculdade de Educação Física da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
Referências
1. Blasco G, et al. The Gut Metagenome Changes in Parallel to Waist Circumference, Brain Iron Deposition, and Cognitive Function. J Clin Endocrinol Metab. 2017 Aug 1;102(8):2962-2973. doi: 10.1210/jc.2017-00133.
2. Arnoriaga-Rodríguez M, et al. Obesity Impairs Short-Term and Working Memory through Gut Microbial Metabolism of Aromatic Amino Acids. Cell Metab. 2020 Oct 6;32(4):548-560.e7. doi: 10.1016/j.cmet.2020.09.002.
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