Negacionismo prejudica não só a saúde como conquistas e avanços da medicina
O negacionismo, ou seja, a escolha de negar os fatos como forma de escapar deles, de acordo com Lília Schwarcz, professora do Departamento de Antropologia da USP (Universidade de São Paulo) costuma se fortalecer quando a sociedade se depara com situações de instabilidade, como uma crise fora do normal ou algo nunca antes presenciado na atualidade, por exemplo.
Quando em oposição às evidências científicas, a atitude negacionista encontra sustentação em teorias e discursos conspiratórios, sem aprofundamento ou isolados e até favorece disputas ideológicas e interesses políticos e religiosos.
"No caso brasileiro, o presidente [Jair Bolsonaro] costuma dizer que ele é a informação, desdiz o que seu ministro da Saúde determina e não confia ou desdenha das teorias produzidas pelos médicos e cientistas", acrescenta Schwarcz.
Impactos do negacionismo na saúde
Na África do Sul, entre 1999 e 2008, o presidente Thabo Mbeki negou a gravidade do surto da Aids e hoje o país detém quase 20% dos infectados do planeta —7,7 milhões de pessoas. Na época, sua ministra da Saúde, Tshabalala-Msimang, também ignorou a doença e indicava que uma alimentação à base de legumes, como beterraba, bastava para se proteger do vírus HIV.
Mais recentemente, em paralelo com o movimento antivacina, que contesta sem nenhum embasamento científico a eficácia e a segurança da imunização, o índice de cobertura vacinal vem caindo e doenças contagiosas erradicadas ou perto disso voltaram a aparecer com mais força.
No Brasil, por exemplo, o sarampo retornou em 2019 e a vacinação contra a poliomielite (paralisia infantil), que desde 1990 estava controlada por aqui, em 2016 não atingiu sua meta. Algo similar vem ocorrendo com hepatite A, BCG, rotavírus, meningocócica C e pentavalente.
No atual momento, enquanto é preciso manter e ampliar o isolamento social para conter o avanço do novo coronavírus (Sars-CoV-2), o negacionismo ignora seu potencial, o estado e a capacidade dos hospitais em lidar com os doentes e a ocorrência de milhares de mortes no Brasil e no mundo.
"Por aqui, como o governo tem sido oscilante, as consequências poderão ser muito graves. Um estudo publicado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP aponta que o novo epicentro global da pandemia será o nosso país, que é profundamente desigual", diz Schwarcz.
Fatores associados à negativa dos fatos
Lis Furlani Blanco, doutoranda em antropologia social pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e atuante em questões médicas e sanitárias, explica que nessa pandemia aparecem diversos níveis de problemas relacionados ao negacionismo.
"Tem ele em si [o negacionismo], mas também as fake news, as subnotificações e até a dificuldade de se traduzir para a população processos científicos comuns, como testes de medidas que ora convém, ora não, e tudo isso constrói a percepção das pessoas sobre a doença".
Em países africanos, como o Congo, boatos compartilhados por WhatsApp de que o ebola, que entre 2018 e 2019 matou mais de 1.800 pessoas no país, era um negócio lucrativo que contava com a participação de médicos enviados para ajudar no tratamento do vírus, levou muitos desses profissionais da saúde a serem atacados pela população. Para essa lista de mortos entrou Richard Mouzoko, epidemiologista sênior da OMS (Organização Mundial da Saúde).
De volta ao cenário brasileiro, para Furlani, a deslegitimação das universidades públicas ao longo dos últimos anos (além do corte de verbas e bolsas do CNPq para estudos) também contribuiu para que a sociedade passasse a duvidar da produção científica desenvolvida nesses lugares, que para ela são os principais centros de pesquisa do país.
"Qualquer outro conteúdo produzido está sendo colocado no mesmo patamar que a ciência, as coisas viraram opinião".
Retrocesso, sofrimento e riscos
Edison Bueno, médico sanitarista e chefe do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), diz que a negação do conhecimento científico vai contra os valores, o progresso, traz sofrimento e só é contornada quando se garante livre acesso à informação, à educação, à saúde e à discussão de ideias e debates, que, ainda segundo ele, devem se estender para além dos círculos acadêmicos.
"A ciência precisa ser exemplo para a sociedade ao ser transparente e expor os diversos conflitos de interesses que existem. Os problemas da democracia só se resolvem com mais democracia", e acrescenta: "Mesmo compreendendo que devemos ter autonomia para tomar decisões, não cabe aceitar atitudes ou posicionamentos que vão contra o bem-estar ou, pior, colocam em risco a vida de todos".
Schwarcz complementa que os mais vulneráveis são as populações negras e periféricas das grandes cidades, que, por não terem acesso a serviços básicos, como água potável e saneamento, ou equipamentos de saúde pública, estão muito mais suscetíveis a uma série de doenças, especialmente cardíacas e pulmonares —incluindo agora também a covid-19.
Mais união entre cientistas e sociedade
Gonzalo Vecina Neto, ex-presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e ex-secretário municipal de saúde da cidade de São Paulo, defende que a sociedade deve participar das decisões científicas, mas dentro da sua capacidade de compreensão, e que os conhecimentos necessários para um processo de decisão não devem ser propriedade dos cientistas. Para ele, os que se colocarem contra isso são maus profissionais, que não estão a serviço da verdade.
"Da mesma forma que um cientista que fala inverdades, charlatanices, como, por exemplo, dizer que um medicamento que eventualmente pode fazer o bem deve ser sempre receitado. Isso é um desserviço à ciência e, portanto, um desserviço à sociedade. Esses cientistas devem ser colocados de escanteio", afirma.
"Agora, cientistas que levam conhecimento para a sociedade e tentam fazer com que ela entenda o que é uma boa ciência a serviço da construção e uma melhor atenção à saúde devem ser valorizados".
Vecina Neto afirma também que há uma enorme diferença entre querer silenciar a ciência de contestá-la. "Negar faz parte. O problema é negar sem base e nenhum conhecimento e a chance de errar é muito grande. O negacionismo por conhecimentos sem base científica não tem valor algum".
Negacionismo não é mecanismo de defesa
Paulo Amarante, psicanalista e pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), explica que a crítica é necessária para a ciência, pois, sem ela, não há evolução, ampliação do conhecimento e ruptura de paradigmas, e em meio a essa discussão considera importante também distinguir negacionismo de negação, que é um dos vários mecanismos inconscientes e individuais de autodefesa do ego diante de uma ameaça, relacionado a um conceito da psicanálise.
Durante catástrofes e pandemias, como a de agora, por exemplo, num primeiro momento é aceitável e natural que a gente fique passado e sinta aquele sentimento de descrença por um tempo. Quanto mais velhas, principalmente, mais dificuldades as pessoas encontram em se adaptar a uma nova rotina ou mudança, pois já têm seus hábitos regulares bem estabelecidos.
"O negacionismo é outra coisa. É uma atitude muito mais política de que os homens são incapazes de encontrar soluções centradas. Procura se fundamentar a partir de concepções de que a Terra não é redonda, de que vacina não tem efeito, mas por uma disputa de narrativa de mundo, de concepção de vida. O que está em jogo é o discurso de poder", alerta Amarante.
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