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Por que todo mundo está fazendo pão, entre outras receitas, na quarentena?

Padeiros caseiros, uni-vos - Pixabay
Padeiros caseiros, uni-vos Imagem: Pixabay

Gabriela Ingrid

Do VivaBem, em São Paulo

11/06/2020 04h00

Além das diversas fotos compartilhadas pelas redes sociais, a certeza de que os pães tomaram conta do isolamento social veio depois que entrei no mercado e não tinha farinha. Nada, nem no fundo da prateleira nem na seção de opções gourmetizadas. Restavam apenas vestígios daquele pó branco antes tão ignorado na minha casa.

Eu também sou culpada. Buscava a farinha porque também entrei no surpreendente mundo do "Eu também posso", também conhecido como "Não é que é fácil?". Há dois meses o grupo da família no Whatsapp trocou de nome para "Família de Padeiros" (seguido por emojis de pães e uma cervejinha). A timeline das minhas redes sociais também está repleta de fotos deste alimento, com versões de todos os tamanhos e recheios.

Mas não quero restringir o fenômeno da descoberta da cozinha apenas aos pães. A confeitaria caseira está em alta também, com muffins, cookies, bolos e pudins. Seja qual for a vertente do "faça você mesmo" na cozinha, há algo por trás dessa onda de gente botando a mão na massa durante a pandemia do novo coronavírus.

São atividades manuais que são desafiadoras, mas são possíveis. Dá um pouquinho de esperança para a gente. É como se fosse um pequeno sonho que a gente cultiva Lívia Beraldo de Lima Basseres, psiquiatra e mestre em psiquiatria pelo IPq (Instituto de Psiquiatria) da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo)

O grupo da família virou uma grande galeria de pães - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O grupo da família virou uma grande galeria de pães
Imagem: Arquivo pessoal
Segundo ela, na hora em que o pão está pronto, há uma certa esperança. "É como se a gente passasse a esperança que a gente tem no mundo, de que as coisas pós-pandemia sejam melhores, para o pão que a gente faz, para o doce." Realmente, um bolo bonito é o auge do meu dia.

Basseres ainda diz que atividades manuais feitas com prazer, envoltas de pensamentos positivos (como a esperança de dar certo), ajudam a aliviar tanto o estresse quanto a ansiedade, e a sair um pouco da rotina.

A relação entre comida e emoções faz todo sentido durante a quarentena também. É como um resgate àquela lembrança da infância, do bolo da avó, da receita da mãe, um alimento que traz conforto. "E pedir e trocar receitas é uma forma de estar junto também", diz Maria Célia Correia de Oliveira Costa, nutricionista pós-graduada em nutrição funcional pela Universidade Cruzeiro do Sul, com quase 20 anos de experiência na indústria panificadora.

De acordo com Costa, a cozinha, que parecia um ambiente impossível, inalcançável, que era papel de mãe, avó, tornou-se simples e possível. Mas, na verdade, a cozinha sempre foi alcançável, diga-se de passagem. O problema é que era lugar ocupado apenas pela mulher.

De qualquer forma, essa (re)descoberta com o pão, segundo Costa, é muito intrigante. "É quase como uma brincadeira. As pessoas 'descobriram' que o pão é feito da junção de ingredientes simples, como farinha, água, sal e fermento. Os passos vão se tornando mais desafiadores se usar fermento biológico ou natural, ou adicionar castanhas, azeitona."

Mudanças alimentares

Além do conforto emocional, o amor pelas panelas leva a um benefício nutricional. "Ao cozinhar, descobrimos que o simples faz muito bem, e é justamente o que o nosso Guia Alimentar para a População Brasileira tanto fala", diz Costa, referindo-se ao livro lançado em 2014 pelo Ministério da Saúde, com o objetivo de oferecer à população informações confiáveis sobre alimentação saudável e prevenção de doenças crônicas como obesidade e diabetes.

O guia sugere a preferência pelas preparações simples e o consumo de alimentos frescos e sazonais. "Tem tudo a ver com a quarentena. Não é hora de gourmetizar, procurando por aquela batata-doce roxa. No mercado só vai ter a batata, porque é o alimento da época", diz a nutricionista.

Além de ser mais barato, o alimento sazonal oferece uma carga nutritiva maior. Seu amadurecimento não é forçado, ele é retirado da natureza em seu processo natural, portanto, é mais nutritivo.

A quarentena também relativizou a falta de tempo. "Agora, eu descubro que tenho tempo. Mais que isso, descubro que comer bem é simples. É descascar um legume, picar uma verdura, guardar na geladeira para fazer uma sopa depois", diz Costa. Isso faz com que se reduza o consumo de refinados e processados, dos conservantes.

Além disso, segundo ela, ao "colocar a mão na massa", é possível desenvolver métodos e estratégias para levar para o dia a dia quando tudo voltar ao normal. "Para uma atividade se tornar hábito, é preciso exercitá-la por 21 dias. Já estamos há dois meses em casa, temos grandes chances de conquistar essas pessoas pela prática da alimentação saudável", diz.

Pão nosso de cada dia

Os loucos por dietas restritivas dirão que o pão é vilão. Uma grande bobagem dizer isso de um alimento que faz parte da cultura —inclusive, saudades do pão na chapa da padaria. "Não faz sentido tirar o consumo do pão. O que temos que prestar atenção são os excessos", diz a nutricionista.

Não é porque alguém faz pão todos os dias que vai se esbaldar na farinha todos os dias, assim esperamos. "É possível congelar e comer aos poucos ou fazer todos os dias e dar para a família comer", sugere a especialista. Além disso, vale se atentar para o tipo de pão. Evitar embutidos no recheio, assim como ingredientes muito gordurosos como chocolate de gordura hidrogenada.

Costa ainda se diz satisfeita com o "boom" da fermentação natural. "Esse fermento vai biodisponibilizar mais ainda as vitaminas e minerais. É mais nutritivo, saboroso, e até a apresentação é diferente, com uma casca mais crocante e um miolo mais macio". Segundo ela, o pão de centeio com fermentação natural aumenta também o teor de saciedade. Os benefícios são ainda maiores quando a farinha de trigo integral substitui a tradicional.

Aliás, trabalhar com fermentação natural é realmente uma superação. São dias esperando aquela gosma dentro do pote crescer. E quando o pão sai do forno 'instagramável", o sentimento é de cruzar uma linha de chegada. Acho que é justamente a sensação que precisamos agora.