Comida, sexo, jogos: como se trata um vício, especialmente comportamental?
Resumo da notícia
- As dependências se instalam quando o sistema de recompensa do cérebro não funciona bem
- Elas podem envolver uso de substâncias ou comportamentos
- Uma forma de descobrir se um hábito é normal ou patológico é observar se ele faz mal para a própria pessoa e quem convive com ela
- O tratamento é feito com psicoterapia, medicamento, grupos de ajuda e, em casos mais graves, internação
Começa como um pequeno prazer, algo para trazer mais sabor ao dia a dia ou preencher o tempo. Aí vira um hábito, mas a pessoa segue acreditando que tem um controle total sobre ele. Quando se dá conta, aquilo ocupou o centro de sua vida e já não é mais possível viver sem. Esse é o caminho das dependências, que podem ter como origem uma predisposição genética, surgir em um momento desafiador, para aliviar dores emocionais ou um vazio existencial, ou a partir de um comportamento que é tendência na sociedade ou grupo social.
O risco de desenvolver uma dependência não está apenas em ingerir substâncias que comprovadamente fazem mal à saúde, como álcool e drogas. Se a pessoa não tiver equilíbrio, o que faz bem ou é necessário para a vida também pode levá-la a um caminho de autodestruição, como comida, compras, sexo, jogos, internet, medicamentos como ansiolíticos e indutores do sono.
Geralmente são pessoas impulsivas, hiperativas, vorazes, imediatistas, que não desenvolvem limites e autocontrole, e não contêm seus desejos nem adiam o prazer. Elas podem recorrer a substâncias ou comportamentos que estimulam excessivamente o sistema de gratificação cerebral, principalmente quando estão vulneráveis ou levando uma vida vazia de sentido. Nesses momentos, ficam mais suscetíveis a desenvolver uma dependência porque apostam todas as fichas naquele hábito para acalmar as emoções, principalmente as negativas.
Corpo e mente trabalham juntos na manutenção de uma dependência, qualquer que seja, pois o mecanismo delas é muito parecido, embora tenham efeitos diferentes no cérebro. Em relação ao corpo, ocorre uma liberação de substâncias que o fazem entender que está sendo recompensado, já que elas causam prazer, excitação e bem-estar. Cada pessoa produz uma quantidade maior ou menor de neurotransmissores como a adrenalina, serotonina, dopamina e outros que, quando liberados, promovem essas sensações. Por sua vez, a parte psíquica estabelece uma forte ligação com esse sistema de recompensa.
A diferença é que algumas pessoas ficam dependentes das sensações desencadeadas por ele. É aí que mora o problema. Elas acabam estabelecendo uma relação patológica entre um desejo que é incontrolável e o prazer que ele proporciona, e passam a não ter olhos para mais nada. O pior é que esse processo é progressivo e nem todo mundo consegue identificá-lo no início. Há quem nota que aquele hábito está atrapalhando sua vida e que está perdendo o controle da situação, mas fica com os sentimentos divididos na hora de abandonar algo tão agradável.
Dependências comportamentais
Além das já conhecidas dependências químicas e com álcool e cigarro, veja abaixo os vícios comportamentais.
Comida
Alguns ingredientes e alimentos podem causar dependência em pessoas suscetíveis, principalmente os que têm alta concentração de gordura, açúcar e sal. Quando a falta de controle no que diz respeito à comida dura um período de pelo menos 12 meses, a ponto de prejudicar a saúde, é sinal de que a pessoa tem o problema.
A fissura ou desejo por determinados alimentos, como café, chocolate e refrigerante de cola é tão grande que ela não consegue ter um bom desempenho na vida sem eles. É capaz de abrir mão de qualquer atividade para comer ou beber. A dependência de comida está associada ao sobrepeso e à obesidade e é mais frequente em quem tem transtornos alimentares, mais de 35 anos e nas mulheres.
Jogos
Tanto jogos de azar quanto games escravizam totalmente a pessoa. No caso dos jogos eletrônicos, eles ocupam o espaço das tarefas diárias, comprometem a vida social, o trabalho, os estudos e até os rituais de higiene pessoal, de tão grande que é a entrega a esse tipo de lazer.
O jogador pode se tornar impulsivo, desatento, desenvolver agressividade, ansiedade, inquietação, depressão, insônia, irritabilidade e tremores. E precisa passar cada vez mais tempo jogando. Já quem é dependente de jogos de azar costuma se envolver em brigas familiares, endividar-se e, não raro, tentar o suicídio.
Internet e redes sociais
Não dá para imaginar o mundo sem internet. Mas gastar mais horas com as atividades online do que as pessoas reais não é um bom sinal. Esse é um sintoma de quem tem dependência de internet, assim como se conectar apenas para checar o e-mail, dar uma olhada nas notícias ou ver se há uma notificação nas redes sociais, e ficar bem mais tempo do que o planejado.
Mesmo quando desligam o celular, o notebook ou o computador, os dependentes de internet não conseguem tirar o pensamento do aparelho. Como acontece com quem tem dependência em games, a pessoa vai se tornando irritada, deprimida, ansiosa, inquieta e deixa as obrigações, a vida social e familiar em segundo plano.
Compras
Quando a pessoa não consegue resistir ao impulso ou desejo de comprar, e isso é prejudicial a ela mesma ou a outros, não resta dúvidas: trata-se de uma compradora compulsiva. É muito fácil identificar quem tem o problema. Compra mais do que pode pagar, mesmo que não precise dos produtos, e depois sofre pela culpa. O comportamento, também chamado oniomania, faz a pessoa adquirir itens novos para atenuar emoções negativas como a tristeza e a angústia. E mesmo que queira se controlar, não consegue. Esse é outro exemplo de dependência que prejudica o trabalho, as relações sociais e familiares, além de levar a problemas financeiros.
Sexo
Práticas sexuais cada vez mais intensas, motivadas por estimulação, fantasias e desejo excessivos. Essa é a rotina de quem é dependente de sexo. A pessoa não consegue se controlar e precisa desesperadamente ter um orgasmo, mesmo que esteja numa situação imprópria para isso.
O transtorno, que pode ter como origem abuso sexual, traumas e violências na infância, funciona como uma válvula de escape para aliviar sentimentos como angústia e ansiedade. Mas nem tudo é prazer, já que logo depois do ato vem a culpa. Além disso, o comportamento coloca a saúde em risco por conta das doenças sexualmente transmissíveis.
Tratar é possível
Nem sempre é fácil perceber onde acaba o comportamento normal e começa a dependência. Uma forma de tirar essa dúvida é observar se tal hábito incomoda e prejudica a própria pessoa ou quem está ao seu redor, embora o diagnóstico caiba aos especialistas. Quando a dependência é diagnosticada, começa uma nova etapa, que é colocar na balança suas especificidades e a gravidade do caso para definir um tratamento personalizado.
Ele é feito com psicoterapia, remédios, mudanças no estilo de vida, participação em grupos de ajuda mútua, como os Alcoólicos Anônimos, e tratamento de problemas físicos e complicações de ordem emocional como depressão, ansiedade e fobia social. A diferença fica por conta das especificidades da dependência. Não é comum, mas há pessoas que conseguem, inclusive, se recuperar sozinhas. No entanto, elas fazem parte de uma minoria (cerca de 25%) e são as que têm quadros menos graves.
No outro extremo, encontram-se aquelas que precisam ser internadas. Essa é a única saída se a vida do dependente ou a de quem convive com ele estiver ameaçada. A internação também é o protocolo em casos graves de abstinência e quando o tratamento fora do hospital não surte efeito, pois no ambiente hospitalar ela não tem a possibilidade de usar a substância ou manifestar o comportamento nocivo que a colocaram nessa condição. Dessa forma, a equipe médica também pode observá-la melhor.
O objetivo do tratamento, independentemente da gravidade, é ajudar a pessoa a desenvolver mecanismos de enfrentamento da dependência. Além de fazê-la se sentir mais forte diante das dificuldades emocionais e das pressões internas e externas que vai sofrer após a reabilitação. Em alguns casos, não é possível manter distância do que causou a dependência. Um viciado em drogas ilícitas, cigarro ou álcool deve ficar longe dessas substâncias para sempre. Mas não é razoável pedir a alguém que pare de usar a internet.
Por isso que é tão desafiador vencer as dependências comportamentais. É preciso ter paciência, já que a recuperação é lenta, ter bom senso e adotar algumas regras que ajudam no autocontrole, como estipular um tempo de uso de aparelhos eletrônicos. O que um ex-dependente nunca deve fazer é relaxar. Pelo contrário, ele deve sempre se manter vigilante. Quem já foi viciado em álcool, por exemplo, jamais pode se descuidar ou achar que pode se tornar um "bebedor social".
Quando a pessoa tem em mente que a dependência está estabilizada, e não curada, ela não baixa a guarda. Isso é fundamental para que não venha a ter recaídas. Para vencer uma dependência, além de mudar o estilo de vida é importante resolver tudo o que causa desconforto emocional, como vazio, relações rompidas, medos e ansiedades. Por isso é tão importante fazer psicoterapia. Só aprendendo a lidar com as frustrações e o tempo que as coisas levam para acontecer, a pessoa se fortalece e para de precisar de algo que a anestesie da vida.
Fontes: Claudio Duarte, psiquiatra do Hospital Santa Mônica, responsável pela unidade de dependência química; Hermano Tavares, psiquiatra e coordenador do Programa de Transtornos do Impulso do IPq-HCFMUSP (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo); Ronaldo Coelho, psicólogo e psicanalista, mestre em psicologia institucional pela USP.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.