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Crianças também podem ter 'covid longa'; médicos recomendam testar sempre

Davi teve suspeita de apendicite, mas na verdade era a síndrome inflamatória multissistêmica causada pela covid-19, doença que ninguém sabia que ele tinha contraído - Divulgação/Hospital Pequeno Príncipe
Davi teve suspeita de apendicite, mas na verdade era a síndrome inflamatória multissistêmica causada pela covid-19, doença que ninguém sabia que ele tinha contraído Imagem: Divulgação/Hospital Pequeno Príncipe

Vinicius Konchinski

Colaboração para VivaBem, em Curitiba

10/09/2021 04h00

Sara Nascimento de Souza, 37, já não sabia mais o que fazer para aliviar as dores na barriga das quais seu filho Davi, 7, tanto reclamava há dias. Era dezembro de 2020 e ela já havia levado Davi a unidades de saúde duas vezes. Na terceira passagem pelo médico, ele foi diagnosticado com uma inflamação no apêndice do intestino grosso, a famosa apendicite.

O menino foi, então, transferido de ambulância para o hospital pediátrico Pequeno Príncipe, em Curitiba (PR). Tudo indicava que ele passaria por uma cirurgia emergencial. Ao realizar exames preparatórios para o procedimento, no entanto, descobriu-se que Davi não tinha apendicite. Estava, na verdade, com sintomas de uma síndrome inflamatória multissistêmica causada pela covid-19, doença que ninguém sabia que ele tinha contraído.

"Ele testou negativo para covid. Mas, em outros exames, vimos que ele já tinha anticorpos contra o vírus. Ou seja, pegou covid e nós nem temos ideia de como e quando", disse Sara.

O que os médicos relataram à mãe é que Davi provavelmente foi infectado pelo vírus e não apresentou os sintomas mais comuns da doença: febre, tosse, falta de ar e cansaço. Isso não quer dizer que o coronavírus não causou danos ao seu organismo. Pelo contrário. Causou danos graves, mas eles só se manifestaram após os 14 dias da provável infecção.

Davi foi acometido pelo que alguns estudiosos chamam hoje de "covid longa". Apesar de não ser comum em crianças e adolescentes, ela pode levar à morte e nem sempre é devidamente monitorada porque alguns pais subestimaram ou ainda subestimam os efeitos do coronavírus em pessoas com 18 anos ou menos.

Crianças x covid-19

Sara e Davi - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Davi e Sara
Imagem: Arquivo pessoal

No início da pandemia, as primeiras informações divulgadas sobre o coronavírus indicavam que crianças não deveriam se preocupar com a covid. De fato, hoje sabe-se que elas têm menos risco de desenvolver complicações graves. Isso não significa, porém, que estejam "imunes" à doença.

Alguns pais ainda acreditam na tal "imunidade". Por isso, nem sempre submetem seus filhos a testes quando eles têm contato com alguém infectado. Isso faz com que crianças e adolescentes só descubram que têm ou tiveram a covid após apresentarem complicações mais sérias, como as de Davi.

O menino ficou internado na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) por oito dias, foi intubado, mas se recuperou. Hoje, está em casa, mas ainda em tratamento. "Nunca tinha ouvido falar no que o Davi teve", complementou Sara. "Foi muito grave, mas ele já está bem."

Inflamação no coração e no abdome

Paulo Ricardo Martins Filho, professor do programa de pós-graduação em ciências da saúde e chefe do Laboratório de Patologia Investigativa da UFS (Universidade Federal de Sergipe), diz que já há estudos internacionais apontando que menos de 5% das crianças infectadas pelo coronavírus podem apresentar sintomas de covid por até 12 semanas.

Os sintomas mais comuns seguem o padrão verificado entre adultos: fadiga, dor de cabeça, perda de olfato, dor de garganta, perda de concentração e sono.

Existem, contudo, casos mais graves, como a síndrome inflamatória multissistêmica. A "hiperinflamação", segundo Martins Filho, afeta principalmente coração, abdome e pele. Pode causar taquicardia, miocardite (inflamação do músculo do coração), vômitos ou diarreias.

O professor explicou que cerca de 70% das crianças que são diagnosticadas com a síndrome multissistêmica precisam ser internadas em UTI; 2% morrem.

A grande maioria que sobrevive precisa de acompanhamento médico por pelo menos um ano. O próprio Hospital Pequeno Príncipe, que tratou de Davi, criou um ambulatório cardiológico só para tratar crianças e adolescentes com complicações pós-covid.

O ambulatório é o primeiro do país voltado a tratamento pediátrico do pós-covid. Hoje, atende 35 pacientes. Ele é coordenado pela médica Lânia Fátima Romanzin Xavier, eletrofisiologista e cardiologista pediátrica.

Segundo Xavier, a covid em crianças e adolescentes pode ter impactos de longo prazo no pulmão, rins, fígados, músculos e coração. Os problemas no coração são os mais preocupantes, pois podem causar sequelas para toda a vida. Por isso, são o principal alvo do novo ambulatório do Pequeno Príncipe.

A miocardite pode criar uma fibrose, uma espécie de cicatriz, no músculo cardíaco. Afetado, ele pode perder capacidade de bombeamento do sangue e apresentar arritmia, que em último caso pode até ser fatal.

Não há sintomas facilmente identificáveis de que a covid afetou o coração de um paciente. Exames de sangue ou um eletrocardiograma podem mostrar os efeitos de longo prazo no órgão. O problema é que, como muitos pais nem testam seus filhos para covid, não sabem se ele se infectou nem investigam eventuais efeitos de longo prazo do coronavírus.

"A banalização dos efeitos da covid em crianças pode ser perigosa", alerta Xavier.

Problema começa no pós-alta

Talissa e Mariana - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Talissa e a filha Mariana
Imagem: Arquivo pessoal

Talissa Carneiro, 26, suspeitou de que sua filha Mariana, hoje com 9 meses, pudesse estar com covid quando ela não tinha nem 1 mês. O marido de Talissa foi infectado pelo coronavírus logo que voltou ao trabalho, após a licença-paternidade. Como Mariana era uma recém-nascida, a família não quis arriscar e levou a bebê ao Pequeno Princípe.

Mariana foi internada por precaução, devido à pouca idade. Não precisou de oxigênio nem UTI. Teve alta. Contudo, quando voltou ao hospital para uma consulta de retorno, recebeu o diagnóstico de que estava com miocardite pós-covid.

"Ela parecia não ter sintoma nenhum, mas os exames mostraram que tinha um problema grave", contou Talissa. "Não dá para descuidar."

Mariana é uma das pacientes do ambulatório cardíaco pós-covid. Toma medicamentos em casa e é possível que, em janeiro, receba alta. Ainda assim, provavelmente precisará monitorar as condições de seu coração por alguns anos.

Recomendação: testar sempre

Considerando o caso de Mariana e outras crianças com problemas pós-covid, a recomendação dos médicos é enfática: testar. Toda e qualquer pessoa que tenha contato com alguém infectado deve verificar se também foi contaminado pelo coronavírus mesmo que não tenha apresentado sintomas.

Crianças —assim como adultos ou idosos— podem ter problemas de saúde causados pelo coronavírus mesmo que não apresentem os sintomas básicos da doença.

O acompanhamento detalhado sobre os eventuais efeitos da doença em cada paciente provavelmente livrou Mariana, a filha de Talissa, de problemas mais graves. Pode também salvar outros pacientes, independentemente da idade deles.

De acordo com Xavier, quando um paciente de 60 anos está com suspeita de covid, a família rapidamente se mobiliza, o leva para um médico, para realização de exames. Quando uma criança pode estar contaminada, o comportamento deveria ser o mesmo, ainda que o risco de complicações seja menor.