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Origens

As Histórias Que Nos Trouxeram Aqui: um resgate histórico da construção de identidade de pessoas negras


'Pé na senzala' não é triste, é nossa história, diz autora de saga familiar

Lucas Veloso

Colaboração para o UOL, de São Paulo

22/10/2022 04h00

Como foi a vida das pessoas negras a partir de 14 de maio de 1888, um dia após a Lei Áurea encerrar o regime escravocrata no Brasil? A pergunta norteia a pesquisa da professora e doutora em história Lucimar Felisberto, que se dedica a mapear a mobilidade social de africanos e negros livres na segunda metade do século 19.

No decorrer dos estudos, Lucimar sentiu falta de dados sobre sua própria história. Para driblar a ausência, ela remontou a trajetória da família e reconstruiu sua árvore genealógica. O resultado está no livro "A Saga dos Felisbertos: o deslocamento de uma família negra da Zona da Mata Mineira à Baixada Fluminense" (Editora Afrodiálogos). Durante "Origens: As histórias que nos trouxeram aqui", evento promovido por Ecoa na última terça-feira (18), ela contou como sua pesquisa acabou, de alguma forma, indo ao encontro da história da sua família.

Em vez de pensar nesse 'pé na senzala' de forma pejorativa ou triste, você tem que entender que isso constitui a história da sua vida. Foi aí que pensei na história da minha vida como possibilidade teórica e metodológica, não como algo romântico. E transformei isso em algo que pudesse ser parte da historiografia"
Lucimar Felisberto, historiadora

Além da conexão pessoal ("Resgatar as histórias e as memórias da minha família acalentou meu coração"), o trabalho de Lucimar faz parte de uma nova concepção dentro da academia.

Ela faz parte de uma linha de pesquisa chamada História Social da Cultura, que estuda outras possibilidades de registrar a história da humanidade. De forma resumida, enquanto outras correntes se baseiam em documentos e registros oficiais, essa área permite outras ferramentas para reconstituir eventos passados, como anúncios de jornais, diários, cartas e documentos particulares.

Viagem no tempo para abraçar a mãe

Como parte do trabalho de resgate, Lucimar viajou entre Minas Gerais e Rio de Janeiro visitando fazendas em que seus antepassados viveram e lugares frequentados por eles. Isso lhe deu uma noção geográfica dos ambientes por onde passaram tias, tios, avós e avôs.

"Pude conhecer a escola que a minha mãe havia estudado na década de 1950 e entender o que ela falava de andar quatro horas para estudar. Como uma criança vai conseguir cotidianamente andar duas horas até chegar à escola, voltar duas horas da escola e ainda ir para a lida, criar seus animais! Era uma vida muito pesada, e a maioria dos meus familiares não terminou o ensino fundamental."

O contato vívido com lugares em que seus antepassados viveram fez Lucimar querer algo como uma viagem no tempo. "Que vontade de abraçar minha mãe quando, aos 7 anos, ela fica órfã de mãe e é entregue a outra família. Meu pai foi vítima da sua própria história. Terminou a vida de uma forma muito ruim. E acho que morreu com a certeza de que falhou com a gente. Eu gostaria de voltar e falar: 'não, você não falhou, foi firme e fez a escolha certa para seus filhos, apesar de não terem sido certas para ti'."

No processo de pesquisa da obra, Lucimar recorreu a outro tipo de registro: a história oral. Ela procurou todos os familiares vivos, cruzou as informações que ouviu deles e então conseguiu estabelecer um roteiro coerente para a trajetória familiar.

"O vivido é importante, mas o não vivido acaba sendo mais interessante. Ouvir minhas tias e minha mãe falando do cotidiano e das vivências foi o ponto alto, o que mais aguçou minha curiosidade."

Pé na senzala

Ainda que a busca por documentos oficiais tenha sido um desafio, a história que Lucimar conseguiu reunir por meio de outras fontes mostrava que sua família guardava pontos em comum com escravizados recém-libertos ou negros livres, alvo de seus estudos acadêmicos.

"Quando eu revirava a minha documentação e montava um quadro que mostrasse como era a constituição e dinâmica familiar e até que ponto eu podia identificar as agências dos escravizados, muitas daquelas dinâmicas eram muito parecidas com o que eu vivia [na infância] e com o que eu tinha ouvido meu pai e minha mãe falar", conta.

Para ela, isso não é surpresa. "Como temos só 133 anos da abolição, a maioria de nós, homens e mulheres negras, caso olhemos para trás, iremos nos deparar com essa história de experiência de escravidão dos nossos antepassados. Como estamos pensando nessa experiência recente de liberdade, tem se tornado legítimo pensar experiências atuais, juntamente com seu legado da escravidão."

'Obrigado, tia'

Além de ter usado seu conhecimento para transformar a história da família em material de estudo, Lucimar vê seu trabalho refletir dentro de casa também. Por questões religiosas, ela se mantinha distante da família. A pesquisa funcionou para aproximá-la. "Vários sobrinhos e irmãos vieram agradecer: 'muito obrigado, tia', 'é incrível', 'é verdade o que escreveu'.

Além disso, o livro "A Saga dos Felisbertos" gerou respeito pelo trabalho que ela exerce.

Para que serve a minha formação, né? Talvez eles [os familiares] não vão ler um texto teórico sobre feminicídio, feminismo negro, [lei do] ventre livre, mas eles agora já sabem o que um historiador faz", comenta. "É a possibilidade de um historiador colocar a pessoa conectada com a sociedade que ela vive"
Lucimar Felisberto

Quarta temporada

Promovido por Ecoa, Origens está em sua quarta temporada. O evento deste ano teve como mote "As histórias que nos trouxeram aqui", e aconteceu ao longo desta terça-feira (18), com transmissão online nas plataformas do UOL.

Ao todo, foram seis painéis em que pessoas, entre celebridades e ilustres anônimos, contaram como buscaram respostas sobre o seu passado ou agiram para transformar, cada qual à sua maneira, seus núcleos familiares.

Os intervalos de cada painel contou com apresentações de slam conduzido pela poeta e compositora Bell Puã e de stand up liderado pela humorista e apresentadora dos programas Splash Show e Otalab, do UOL, Yas Fiorelo. A apresentação e mediação dos encontros foi feita pela jornalista Semayat Oliveira.