Heparina: mais usada em hospitais, trata coágulos e evita mortes
Resumo da notícia
- O fármaco é utilizado para prevenir e tratar a formação de coágulos sanguíneos (trombos)
- É indicada em várias áreas médicas, inclusive para pacientes internados por covid
- Antiga, a heparina ainda garante mais segurança, inclusive no controle de efeitos colaterais
- Embora previna AVC e infarto, ela não tem o mesmo efeito dos antiagregantes plaquetários
Descoberta em 1916, a heparina é o anticoagulante mais antigo utilizado na prática clínica. Quando foi introduzido no mercado na década de 1930, ele foi considerado um avanço médico monumental, dada a escassez de alternativas que tivessem o mesmo efeito.
O que é heparina?
Trata-se de um agente natural encontrado em vários tecidos, e é produzido principalmente no fígado. A heparina também pode ser fabricada artificialmente a partir de vísceras de porco ou gado.
Definida como um polissacarídeo polianiônico sulfatado, a heparina pertence à família dos glicosaminoglicanos e à classe dos anticoagulantes. Isso significa que o fármaco atua impedindo a formação de coágulos sanguíneos (trombos). A explicação é do presidente do CRF-SP, o farmacêutico Marcos Machado.
O especialista explica que existem dois tipos de heaprina: a heparina não fracionada (HNF) e a heparina de baixo peso molecular (HBPM). Com indicações similares, a diferença entre elas é que a HBPM tem esquema de administração simplificada, resposta às doses mais confiável, além de menores efeitos colaterais.
Devido às suas características, elas só podem ser comercializadas sob receita médica.
Em quais situações ela deve ser usada?
Dada a utilização desse tipo de fármaco há mais de 90 anos, ele é considerado seguro e eficaz. Contudo, é importante que você faça o uso racional desse remédio, ou seja, utilize-o de forma apropriada, na dose certa e pelo tempo determinado pelo seu médico.
As heparinas são indicadas para prevenir e tratar as seguintes condições:
- Trombose venosa profunda (presença de coágulo em um vaso)
- Embolia pulmonar (coágulo em uma artéria do pulmão)
- Infarto
- Fibrilação atrial
- Cirurgias em geral (especialmente cardíacas e ortopédicas)
- Hemodiálise
- Pacientes acamados em razão de doenças agudas (falência respiratórias, infecções graves etc.)
- Procedimentos cardiológicos (cateterismo)
A partir de 2020, com a pandemia do novo coronavírus, o Sars-Cov-2, elas também passaram a ser utilizadas em pacientes internados por covid-19.
Entenda como ela funciona
A heparina possui boa farmacocinética, ou seja, ao ser administrada pelas vias intravenosa ou subctânea, ela é rapidamente distribuída pelos tecidos por meio da corrente sanguínea. O seu efeito é quase que instantâneo (mas pode ser mais lento entre pacientes com idade superior a 60 anos).
A sua biotransformação ocorre nas células (sistema retículo endotelial) e no fígado, mas seu processo de metabolização ainda é desconhecido. Após cumprir sua tarefa, ela é excretada, em parte, pela urina.
Quanto à farmacodinâmica, ou mecanismo de ação, o fármaco inibe as reações que levam à coagulação do sangue e à formação de coágulos. Para esse fim, a heparina se liga a várias proteínas, em especial a antitrombina, que altera e inibe a trombina.
"Esse medicamento bloqueia a chamada cascata de coagulação, que depende de vários fatores. Entre eles, destaca-se a trombina (fator IIa) e o fator Xa. Ao inativar a primeira, o fármaco impede que ela se converta em fibrina", fala Marcello Iacomini, farmacêutico e bioquímico, professor emérito da UFPR.
E é exatamente isso que previne a formação de trombos e ainda prolonga o tempo de coagulação do sangue.
Conheça as apresentações disponíveis
A marca de referência da heparina (suína) é a Hepamax-S®. Geralmente ela é de uso hospitalar, mas existem soluções que podem ser utilizadas em casa.
As apresentações disponíveis são: solução injetável em ampolas de 5000 UI/0,25 ml —as embalagens contêm 1, 25 e 100 frascos-ampola de 5,0 mL e 10 mL ou 1, 25 e 100 ampolas de 5,0 mL.
O medicamento consta da Rename 2020 (Relação Nacional de Medicamentos Essenciais), por isso tem distribuição gratuita em todas as UBS (Unidades Básicas de Saúde). Para ter acesso a ele, basta apresentar a receita médica.
Quais são as vantagens e desvantagens desse medicamento?
Na opinião de Bruno Spadoni, clínico geral e professor da Escola de Medicina da PUC-PR, a grande vantagem do uso da heparina, principalmente a HBPM, é a grande experiência de uso, o que traz segurança no manejo do fármaco, que pode até ser utilizado em casa.
Além disso, como o tromboembolismo ameaça a vida, ele pode ser usado em várias frentes, seja na prevenção ou tratamento de várias enfermidades nas diversas áreas da medicina.
Os especialistas afirmam que mesmo após a superveniência de anticoagulantes mais modernos, de uso oral —que melhoraram a posologia e facilitaram o tratamento em casa— a heparina segue consagrada porque confere aos médicos maior segurança, inclusive no controle de situações adversas.
Quanto às desvantagens, destacam-se os efeitos colaterais como o risco de sangramento e intolerância, como a trombocitopenia (queda no número de plaquetas). Mas Spadoni garante: "quando a indicação e a dose são corretas, e há o devido acompanhamento médico, a heparina é bastante segura e eficaz".
Saiba quais são as contraindicações
A heparina não pode ser usada por pessoas que sejam alérgicas (ou tenham conhecimento de que alguém da família tenha tido reação semelhante) ao seu princípio ativo ou a qualquer outro componente de sua fórmula.
Fique também atento à presença das seguintes condições e situações:
- Presença ou histórico de trombocitopenia induzida pelo medicamento (alteração na contagem de plaquetas do sangue)
- Sangramento ativo (hemorragia), exceção feita à coagulação disseminada intravascular
- Tendência a sangramentos (hemofilia)
- Perigo de aborto
- Pressão do sangue elevada
- Doenças do fígado ou rins
- Impossibilidade de acesso do paciente ao médico para monitoramento posterior
- Gravidez
Crianças e idosos podem usá-la?
A literatura médica pediátrica registra o aumento de eventos trombóticos em crianças. O uso para esse grupo requer dosagem específica, mas um recente estudo da Cochrane, entidade médica comprometida com a medicina baseada em evidências, concluiu que ainda não existem informações consistentes que comprovem a eficácia de utilização preventiva do medicamento nessa população. Os dados constam do Cochrane Database of Systematic Reviews.
Aliás, uma das bulas consultadas pela reportagem adverte que a segurança e eficácia da heparina, em sua forma injetável, ainda não foram estabelecidas. Apesar disso, quando necessário, e diante de cada quadro clínico, será o médico a avaliar os riscos e benefícios do uso desse fármaco.
Quanto aos idosos, o medicamento pode ser indicado, até mesmo nos casos de infarto agudo do miocárdio —e há protocolos precisos para o seu uso. Em todos os casos, esse grupo deve ter acompanhamento médico rigoroso, com avaliação das condições renais e idade do paciente que, a partir dos 80 anos, pode ter maior risco de sangramento.
Deve somar-se a esses cuidados a criteriosa análise de possíveis interações medicamentosas nesses pacientes, que geralmente fazem uso crônico de vários outros fármacos.
Estou grávida e pretendo amamentar. Posso usar heparina?
O fabricante informa que a heparina não atravessa a barreira placentária, mas o fato é que não existem estudos de segurança para gestantes e lactantes. Por isso, cabe ao médico avaliar riscos e benefícios do uso desse medicamento e orientar essas pacientes.
Qual é a melhor forma de utilizá-la?
Geralmente as heparinas são utilizadas em ambiente hospitalar, mas podem ter uso doméstico. Neste caso, siga as indicações de seu médico sobre a melhor forma de administração do medicamento.
Existe uma melhor hora do dia para usar esse medicamento?
Não. O importante é que ele seja utilizado na forma indicada pelo médico ou o fabricante.
O que faço quando esquecer de usar o remédio?
Utilize-o assim que lembrar e reinicie o esquema de uso do medicamento. É desaconselhado usar doses em dobro de uma vez para compensar a dose esquecida.
Se você sempre se esquece de tomar seus remédios, use algum tipo de alarme para lembrar-se.
Quais são os possíveis efeitos colaterais?
Este medicamento é considerado bem tolerado, seguro e eficaz quando utilizado com supervisão ou de acordo com as orientações médicas. Apesar disso, algumas pessoas poderão observar as seguintes manifestações (estes são alguns exemplos):
Comuns
- Sangramento
- Aumento de enzimas do fígado
- Trombocitopenia
Menos comum
- Dor nas costas
- Dor estomacal ou abdominal
- Constipação
- Tontura
- Dor de cabeça
- Sangramento menstrual inesperado ou não usual
- Tosse ou vômito com sangue
Raros
- Dor no peito
- Tremores
- Febre
- Respiração acelerada ou irregular
- Irritação, dor ou ferida no local da aplicação (no caso de injeção)
Interações medicamentosas
Algumas medicações não combinam com a heparina. E quando isso acontece, elas podem alterar ou reduzir seu efeito.
Avise o médico, caso esteja fazendo uso (ou tenha feito uso recentemente) das substâncias abaixo descritas, que são exemplos de interação, mas não excluem outras que, eventualmente, possam ter o mesmo efeito.
- Outros agentes trombolíticos ou antiacoagulantes que afetem a coagulação (como a varfarina, enoxaparina)
- Anti-inflamatórios não esteroidais (como o ácido acetilsalicílico)
- Antiagregantes plaquetários (clopidogrel ou ticlopidina)
- Antibióticos (como a ampicilina)
- Agentes que aumentam o volume de sangue (dextrano 40)
Entre os suplementos, a heparina não combina com o cálcio, por reduzir seus níveis. "Quanto aos fitoterápicos, informe seu médico sobre o uso de suplementos à base de ginkgo biloba, semente de castanha-da-Índia, maracujá e ginseng, que poderiam aumentar o risco de sangramentos", adverte Amouni Mourad, farmacêutica e assessora técnica do CRF-SP.
Interação com alimentos
A sugestão é evitar grandes quantidades de alho, gengibre e mirtilo, que têm propriedades anticoagulantes.
Existe interação com exames laboratoriais?
Sim. Por isso lembre-se de informar ao médico solicitante de exames, ou ao pessoal do laboratório, sobre o uso da heparina, especialmente se faz ou fez uso de doses elevadas. Ela pode influenciar o resultado de exames que avaliam a coagulação, como os testes de tromboplastina parcial ativada (TTPa) e do tempo de coagulação ativada (TCA).
Qual o papel da heparina na cardiologia?
De acordo com João Vicente da Silveira, cardiologista e médico-assistente da Unidade de Hipertensão do InCor-FMUSP, as heparinas são utilizadas principalmente em quadros agudos como angina, infarto, bem como em procedimentos como cateterismo e angioplastia.
"A razão para isso é que elas estão relacionadas à redução de mortalidade. Os achados científicos revelam uma redução significativa (17%) no risco relativo para ocorrência de óbito", completa o especialista.
Entenda a relação entre heparina e covid-19
Com o aparecimento da covid-19, os médicos começaram a observar uma situação comum aos pacientes acometidos pela doença. Muitos deles apresentavam resultados alterados de um exame conhecido como D-dímero —um produto da degradação da fibrina, proteína que é produzida na corrente sanguínea quando há algum tipo de lesão das veias ou artérias, do tecido ou alguma inflamação.
A preocupação, nesse caso, é que taxas elevadas de D-dímero sinalizam risco aumentado para o desenvolvimento de coágulos sanguíneos (trombos), o que pode levar a trombose venosa profunda (TVP) ou o tromboembolismo pulmonar (TEP).
Até o momento, os estudos indicam que esses eventos podem acometer de 40% a 50% dos pacientes em unidades críticas, e em torno de 20% dos quadros moderados. A explicação é de Anna Flávia Ribeiro Santos Miggiolaro, professora de anatomia médica da PUC-PR e pesquisadora das lesões endoteliais provocadas pelo Sars-CoV-2.
Outro dado coletado pelos médicos nos últimos meses é que maiores níveis de D-dímero também eram indicadores de maior mortalidade. Além disso, observou-se que pacientes graves se encaixavam em todas as categorias que classificam o risco para a trombose —a chamada tríade de Virchow. Essa teoria prevê três condições que facilitam o coágulo sanguíneo:
- Lesão endotelial - dano na parede vascular que pode decorrer de trauma ou cirurgia, irritação química etc.;
- Hipercoagulabilidade - maior suscetibilidade à coagulação, que pode ocorrer na gravidez, pós-parto, sepse, neoplasia, doença inflamatória intestinal etc.;
- Estase venosa - alterações do fluxo sanguíneo por imobilidade, veias varicosas, gravidez, obesidade, entre outros.
Quando o coronavírus atinge as células pulmonares, ele promove uma grande liberação de proteínas inflamatórias, que é chamada pelos médicos de tempestade de citocinas. "Em pacientes graves, é como se colocassem uma espécie de clara de ovo no sangue e ele se tornasse mais espesso, engrossado", explica Miggiolaro.
"Ao invadir a célula que reveste o vaso sanguíneo internamente, o vírus pode provocar a morte celular, causando lesão endotelial", completa a médica.
Assim, o uso da heparina, nesses quadros, visa prevenir a trombose. Por isso essa profilaxia química se tornou obrigatória para pacientes internados por covid-19 e tem contraindicação apenas nas hipóteses de reação alérgica, intolerâncias específicas do perfil do paciente ou sangramento aparente.
Quanto às doses utilizadas, ainda não há consenso. Alguns protocolos sugerem o uso de doses intermediárias (maiores); outros, as doses clássicas. Mas todos concordam que, entre pessoas com obesidade, é preciso ajuste de dose.
Para quem já faz uso crônico de anticoagulante, a recomendação é manter o tratamento. No entanto, o médico deve avaliar a eventual interação medicamentosa e orientar a continuidade, ou não, do seu uso durante o tratamento da covid-19.
Em casa, coloque em prática as seguintes dicas:
- Fique atento à validade do medicamento, que é de 24 meses. Considere que, após aberto, essa validade é ainda menor;
- Mantenha o medicamento sempre dentro da própria embalagem e nunca descarte a bula até terminar o tratamento;
- Leia atentamente a bula ou as instruções de consumo do medicamento;
- Utilize o medicamento na posologia indicada;
- Ingira os comprimidos inteiros. Evite esmagá-los ou cortá-los ao meio --eles podem ferir sua boca ou garganta. A exceção é a indicação médica;
- Escolha um local protegido da luz e da umidade para armazenamento. Cozinhas e banheiros não são a melhor opção. A temperatura ambiente deve estar entre 15°C e 30°C;
- Guarde seus remédios em compartimentos altos ou trancados. A ideia é dificultar o acesso das crianças;
- Procure saber quais locais próximos da sua casa aceitam o descarte de remédios. Algumas farmácias e indústrias farmacêuticas já têm projetos de coleta;
- Evite o descarte no lixo caseiro ou no vaso sanitário. Frascos vazios de vidro e plástico, bem como caixas e cartelas vazias podem ir para a reciclagem comum.
O Ministério da Saúde mantém uma cartilha (em pdf) para o Uso Racional de Medicamentos, mas você pode complementar a leitura com a Cartilha do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos - Fiocruz) (em pdf) ou do Conselho Regional de Farmácia de São Paulo (também em pdf). Quanto mais você se educa em saúde, menos riscos você corre.
Fontes: João Vicente da Silveira, cardiologista e médico-assistente da Unidade de Hipertensão do InCor-FMUSP (Instituto do Coração da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo); Anna Flávia Ribeiro Santos Miggiolaro, médica cirurgiã, doutoranda em ciências da saúde pela PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), onde desenvolve pesquisas sobre lesões endoteliais provocadas pelo Sars-CoV-2 e professora da Escola de Medicina da PUC-PR; Bruno Spadoni, clínico geral e professor da Escola de Medicina da PUC-PR; Marcello Iacomini, farmacêutico e bioquímico, professor emérito da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e membro titular da Academia Brasileira de Ciências; Marcos Machado, presidente do CRF-SP (Conselho Regional de Farmácia em São Paulo), farmacêutico e bioquímico especialista em análises clínicas; Amouni Mourad, farmacêutica, professora do curso de farmácia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, doutora em ciências da saúde pela FCMSCSP (Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo) e assessora técnica do CRF-SP. Revisão técnica: Amouni Mourad.
Referências: Pelland-Marcotte M-C, Amiri N, Avila ML, Brandão LR. Low molecular weight heparin for prevention of central venous catheter?related thrombosis in children. Cochrane Database of Systematic Reviews 2020, Issue 6. Art. No.: CD005982. DOI: 10.1002/14651858.CD005982.pub3. Accessed 13 January 2021; Warnock LB, Huang D. Heparin. [Updated 2020 Jul 15]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2020 Jan-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK538247/.
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