"Fiquei tão ruim que via a minha cova"


Em Antônio Pissirilli, a covid-19 desencadeou uma condição neurológica rara, chamada de Guillain-Barré




Giulia Granchi, de VivaBem, em São Paulo

Ligue o áudio para acompanhar os depoimentos em vídeo

Milhares de pacientes que foram infectados pelo coronavírus continuam a sofrer com sequelas mesmo após a carga viral sumir de seus corpos.
Os sintomas residuais são preocupantes e podem persistir por meses ou, em alguns casos, causar danos para o resto de suas vidas.


Conversamos com cinco pessoas que contaram como está a vida após as sequelas da doença.

Em isolamento social com a família desde março, o ex-gari aposentado Antônio Pissirili, 74, não imaginou que fosse possível estar com covid-19 quando apareceram os sintomas de uma gripe quase três meses após iniciar o confinamento voluntário em sua casa em São Paulo, na região de Parelheiros, extremo sul da cidade.

Entre chás e remédios para combater o mal-estar, as atividades do lar foram acontecendo sem grandes preocupações até a manhã do dia 13 de maio. Quando acordou, já pensando em preparar o café da manhã para a esposa, Antônio fez o movimento natural de mover as pernas para o lado e sair da cama, mas não conseguiu se levantar.

A sensação nova de não ter forças para mover os braços e pernas preocupou o casal, que buscou atendimento em uma AMA (unidade de Assistência Médica Ambulatorial) da região. Pouco tempo depois, além da confirmação da infecção por Sars-CoV-2, Antônio descobriu que o vírus havia desencadeado uma condição neurológica conhecida por Guillain-Barré.

A síndrome se manifesta após uma infecção, como uma gripe, e há casos relacionados também aos outros tipos de coronavírus. Em uma luta exagerada, o sistema imune acaba atacando também células dos nervos periféricos, responsáveis pelo movimento dos músculos e sensibilidade dos membros superiores e inferiores.

"Nem conhecia essa síndrome, e em pouco tempo, fui ficando cada vez mais fraco. Quando eu percebi que meus membros não mexiam mais, me deu uma tristeza e um medo muito grande. Não era mais capaz de mastigar, fazer nada sozinho. Me faltava até a voz."

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O médico também pediu um raio-X do pulmão. "Já sem forças, ele caiu da mesa quando o rapaz tentou colocá-lo sentado", conta a esposa, Natália Pissirilli. O exame apontou que o vírus também havia acometido em 80% os pulmões.

Antônio foi encaminhado para o Hospital de Campanha do Ibirapuera, mas pela gravidade do caso, no dia 20 de maio, apenas uma semana após o primeiro incidente, já foi transferido para o Hospital das Clínicas de São Paulo, e em seguida, intubado.

Além de ter pressão alta, durante a internação o paciente também descobriu que sofria de diabetes, um quadro que até o momento não tinha dado sinais, mas que levou a uma alteração no tamanho de um dos rins.

Entre os dias mais graves de intubação, o período de recuperação na UTI e a liberação para o quarto, foram 22 dias internado, 18 dos quais Natália não teve contato com seu marido, mas recebia ligações periódicas da equipe médica.

"Ela fez a ligação e quando vi no vídeo, eu fiquei desesperada, por que a boca dele estava torta e ele já não falava mais."


Natália Pissirilli, esposa de Antônio

Enquanto aguardava para saber os próximos passos do tratamento, Natália recebeu uma ligação de uma assistente social.


"Ela sugeriu que eu fizesse obras para modificar a casa enquanto ele não voltava. Disse que precisaríamos de rampas porque ele não ia mais andar."

"Medo? Eu tive pânico, desespero, pavor... sabe a pessoa que perde o chão, que vê o mundo cair de um dia para o outro? É a pior coisa da vida do ser humano."


"Você fica achando o tempo todo que aquela pessoa vai morrer e que você não vai mais ver aquela pessoa."


Natália Pissirilli, esposa de Antônio

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Após a alta no HC de São Paulo, Antônio foi encaminhado, assim como Josimar, para o Instituto Lucy Montoro, que trata da reabilitação de pacientes com diferentes quadros de forma gratuita. Lá, o aposentado, acompanhado de sua esposa, passou 35 dias sob os cuidados de uma equipe multidisciplinar, que incluía especialidades como fisiatra, nutricionista e fisioterapeuta, com o objetivo principal de ganhar os movimentos de volta.

O caminho para restabelecer a forma física não foi fácil. Com 16 kg a menos, Antônio diz ter lutado com todas as forças e estar totalmente comprometido apesar da dificuldade dos tratamentos de reabilitação.

"As primeiras sessões foram terrivelmente difíceis. Quando alongavam minha perna, doía até o crânio. Suei, foi puxado, mas nunca desisti. Médicos, enfermeiras, faxineiras, todos foram muito gentis e me motivaram", conta.

"Ele nos surpreendeu. Quando chegou, não conseguia ficar sentado, tinha muita dificuldade de segurar objetos, não comia ou ia ao banheiro sozinho... Em um mês, recuperou quase toda a força muscular. Comparado a outros pacientes com Guillain-Barré, a evolução foi rápida", conta Aline Rossetti Mirisola, médica fisiatra da Rede Lucy Montoro.

Mas mesmo meses após a alta, que aconteceu em 10 de julho, a rotina ainda conta com exercícios de fisioterapia e cuidados especiais. Por conta da alteração nos rins, a alimentação é toda planejada por uma nutricionista, e pelo menos duas horas de cada dia são dedicadas às terapias físicas, como pedalar na bicicleta estacionária e fazer movimentos com halteres para recuperar a massa muscular.

"Não tenho preguiça de me dedicar à recuperação, por que voltar para casa foi um milagre. Recebi uma nova chance e vou viver um dia de cada vez."

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Sequelas, complicações e sintomas persistentes pelo corpo


Olhos

  • Embaçamento visual
  • Conjuntivite
  • Lesão na retina


Cérebro

  • Dor de cabeça
  • Tontura
  • Perda de olfato e paladar
  • Confusão mental
  • Convulsão
  • AVC
  • Trombose cerebral
  • Síndrome de Guillain-Barré

Pulmão

  • Dor e tosse persistentes
  • Pneumonia
  • Fibrose pulmonar
  • Tromboembolia pulmonar
  • Pneumotoráx
  • Abscesso de pulmão


Coração

  • Cardiomiopatia de Takotsubo
  • Miocardite
  • Arritmia cardíaca
  • Choque cardiogênico
  • Isquemia
  • Cor pulmonale agudo (forma de insuficiência cardíaca)

Fígado

  • Aminotransferase elevada
  • Bilirrubina elevada


Pâncreas/sistema endócrino

  • Hiperglicemia
  • Cetoacidose diabética (produção de ácido sanguíneo em excesso)


Rins

  • Proteinúria (valores altos de proteína na urina)
  • Hematúria (presença anormal de eritrócitos na urina)
  • Insuficiência renal aguda


Intestino

  • Dor abdominal
  • Diarreia
  • Vômito/náusea

Músculos

  • Mialgia (dor no músculo)
  • Sarcopenia (perda de massa, força e função muscular)
  • Caquexia (síndrome metabólica caracterizada pela perda muscular)


Sistema vascular

  • Trombose


Pele

  • Petéquia
  • Livedo reticular
  • Urticária
  • Rash cutâneo (vermelhidão)

Condição rara, a Guillain-Barré faz com que o sistema imunológico ataque os nervos. O quadro, já relatado também em pacientes que sofreram de zika e gripe, pode ser desencadeado por uma infecção bacteriana ou viral aguda.

O distúrbio leva à destruição da mielina, substância que reveste os nervos, provoca fraqueza muscular e, em casos graves, causa paralisia total dos membros e até a morte.

A recuperação do paciente depende do acometimento. Embora Antonio estivesse em estágio grave, ele respondeu bem aos tratamentos por ter detectado o quadro precocemente.

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Publicado em 13 de novembro de 2020


Reportagem: Giulia Granchi
Fotos: Mariana Pekin
Edição: Bárbara Paludeti
Edição de Fotografia: Lucas Lima
Infografia: Erika Onodera
Direção de arte: René Cardillo


Fontes consultadas: Isabel Chateubriand, coordenadora médica da reabilitação do Hospital Sírio Libanês (SP); Caio Lamunier, dermatologista do HC-SP; Pedro Farsky, cardiologista do Hospital Albert Einstein (SP); Mauro Gomes, chefe da equipe de pneumologia do Hospital Samaritano de São Paulo; e Saulo Nader, neurologista do Hospital Albert Einstein.