"Algumas sequelas são para sempre"

A médica Simone Sena teve lapso de memória e alterações na visão após ser infectada pelo Sars-CoV-2



Giulia Granchi, de VivaBem, em São Paulo

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Milhares de pacientes que foram infectados pelo coronavírus continuam a sofrer com sequelas mesmo após a carga viral sumir de seus corpos.
Os sintomas residuais são preocupantes e podem persistir por meses ou, em alguns casos, causar danos para o resto de suas vidas.


Conversamos com cinco pessoas que contaram como está a vida após as sequelas da doença.

Na véspera de um plantão de 24 horas, a médica infectologista Simone Sena, 42, sentiu o primeiro sintoma da covid-19, uma dor de garganta leve. No dia seguinte, 22 de maio, notou dores no corpo, mas sem febre ou tosse, alguns dos sinais mais comuns da doença, ela enfrentou o turno no Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, onde trabalha.

Só quatro dias depois, ao perder o olfato, é que a suspeita que havia sido contaminada com o vírus se fortaleceu. O teste feito com swab voltou positivo e Simone passou as duas semanas seguintes isolada, com diarreia, e fortes dores no corpo e na cabeça, mas sem indicação para internação. Mesmo morando com o namorado e o filho, eles não foram infectados.

Ao fim da quarentena, imaginando que o pior já tinha passado, a médica retomou as atividades no hospital

"Eu estava no hospital, fui passar um plantão e eu não lembro disso. Dirigi para casa, passei no mercado, e não me lembro. Me deu uma amnésia"

Ao checar o celular, Simone percebeu que várias partes do seu dia haviam sumido da memória, embora colegas atestassem que ela parecia normal no trabalho. Em paralelo, ela passou a sofrer de insônia e as dores na perna aumentaram, levantando a suspeita que o vírus estivesse causando um quadro de trombose.

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"Me internaram de quinta, no dia 9 de julho, até domingo. Com exames como eletroencefalograma e ressonância, descartaram trombose e lesões sugestivas de AVC, mas detectaram uma alteração no sistema nervoso periférico, o que levou a um quadro de miofasceíte e causou dores nas pernas, e a paralisia do músculo oculomotor do olho esquerdo, que me deixou com visão dupla e distúrbio de acomodação visual, dificultando focar a vista", conta.

Depois da alta, Simone já não andava e não enxergava direito. "Não tive mais lapsos tão prolongados de amnésia, mas as dificuldades de memória e concentração permaneceram. Também receitaram medicação para insônia e dor e me encaminharam para um neuro-oftalmologista e um reumatologista, para tentar ganhar os movimentos de volta", conta.

"Essa miofasceíte é algo meio parecido com a Guillain-Barré, então para eu voltar a andar, eu tive que tomar muita medicação e fazer fisioterapia, mesmo não sendo um doente crítico de UTI."

*A síndrome de Guillain-Barré, que acometeu Antônio após ser infectado pelo Sars-Cov-2, se manifesta após uma infecção. Em uma luta exagerada, o sistema imune acaba atacando também células dos nervos periféricos, responsáveis pelo movimento dos músculos e a sensibilidade dos membros superiores e inferiores.

Os efeitos do vírus no sistema nervoso central e periférico -motivo que causou o distúrbio de visão, insônia, amnésia e dores no corpo- foram os mais cruéis. Mas Simone também teve outras sequelas. Mesmo após um mês do início dos sintomas, exames mostravam comprometimento de intestino e pulmão.

Entre os sintomas mais recorrentes, ela ganhou um estado de cansaço persistente e teve ausência total de olfato do dia 26 de maio até o dia 3 de agosto. "Se passarem um café na minha frente, não sinto o cheiro. Terei que fazer um treinamento experimental com otorrinolaringologista para voltar a sentir, e talvez não recupere totalmente", diz.

Desde o dia 20 de agosto a médica foi liberada para voltar ao trabalho com adaptação. Agora, ela atua em uma enfermaria onde precisa andar menos, não dirige, e ainda faz uso de remédios como corticoide, pregabalina (anticonvulsivo e antiepilético utilizado no tratamento da dor periférica) e anti-inflamatório fitoterápico.

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"Acho que a gente vai descobrir muita coisa sobre a covid-19. Imagino que algumas pessoas tenham alvos, marcadores no DNA, que ajudam a definir gravidade e manifestações diferentes."

"O medo que eu tive foi de estar tão mal que não conseguiria cuidar do meu filho, ou de alguém que precisasse de mim. [...] Eu me internei no dia que estava vendo o velório da nossa neurologista. Vi morrer muita gente com quadros respiratórios, mas fiquei temerosa com aquilo que a gente não conhece."

Sequelas, complicações e sintomas persistentes pelo corpo


Olhos

  • Embaçamento visual
  • Conjuntivite
  • Lesão na retina


Cérebro

  • Dor de cabeça
  • Tontura
  • Perda de olfato e paladar
  • Confusão mental
  • Convulsão
  • AVC
  • Trombose cerebral
  • Síndrome de Guillain-Barré

Pulmão

  • Dor e tosse persistentes
  • Pneumonia
  • Fibrose pulmonar
  • Tromboembolia pulmonar
  • Pneumotoráx
  • Abscesso de pulmão


Coração

  • Cardiomiopatia de Takotsubo
  • Miocardite
  • Arritmia cardíaca
  • Choque cardiogênico
  • Isquemia
  • Cor pulmonale agudo (forma de insuficiência cardíaca)

Fígado

  • Aminotransferase elevada
  • Bilirrubina elevada


Pâncreas/sistema endócrino

  • Hiperglicemia
  • Cetoacidose diabética (produção de ácido sanguíneo em excesso)


Rins

  • Proteinúria (valores altos de proteína na urina)
  • Hematúria (presença anormal de eritrócitos na urina)
  • Insuficiência renal aguda


Intestino

  • Dor abdominal
  • Diarreia
  • Vômito/náusea

Músculos

  • Mialgia (dor no músculo)
  • Sarcopenia (perda de massa, força e função muscular)
  • Caquexia (síndrome metabólica caracterizada pela perda muscular)


Sistema vascular

  • Trombose


Pele

  • Petéquia
  • Livedo reticular
  • Urticária
  • Rash cutâneo (vermelhidão)

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Sintomas como o de Simone, incluindo amnésia lacunar associada à diarreia, e a perda de olfato, já foram relatados por pessoas infectadas por outros tipos de coronavírus. Uma das teorias apontadas pela ciência é de que o vírus ataca diretamente as células do cérebro. "Como ele tem um tropismo que pega muitas células, pode causar meningite e mielite", explica Simone, que é médica infectologista.

Outra possibilidade é que os estragos sejam causados também pela resposta exacerbada do sistema imunológico contra a covid-19. Quando várias células já estão infectadas, o próprio sistema de defesa do indivíduo, que serve para protegê-lo contra vírus e bactérias, pode entrar em uma luta desproporcional causando danos no organismo.

Publicado 13 de novembro de 2020


Reportagem: Giulia Granchi
Edição: Bárbara Paludeti
Fotos e vídeos: Mariana Pekin
Edição de Imagem: Lucas Lima
Infografia: Erika Onodera
Direção de arte: René Cardillo


Fontes consultadas: Isabel Chateubriand, coordenadora médica da reabilitação do Hospital Sírio Libanês (SP); Caio Lamunier, dermatologista do HC-SP; Pedro Farsky, cardiologista do Hospital Albert Einstein (SP); Mauro Gomes, chefe da equipe de pneumologia do Hospital Samaritano de São Paulo; e Saulo Nader, neurologista do Hospital Albert Einstein.