"De repente, achei que fosse morrer"


Pela covid-19, Marli Martins precisou ser internada várias vezes e foi diagnosticada com coágulos sanguíneos nos braços



Giulia Granchi, de VivaBem, em São Paulo

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Milhares de pacientes que foram infectados pelo coronavírus continuam a sofrer com sequelas mesmo após a carga viral sumir de seus corpos.
Os sintomas residuais são preocupantes e podem persistir por meses ou, em alguns casos, causar danos para o resto de suas vidas.


Conversamos com cinco pessoas que contaram como está a vida após as sequelas da doença.

Com tosse e dores na cabeça e no corpo, Marli Martins, moradora da zona norte de São Paulo e copeira em um grande hospital da cidade, procurou uma AMA (Assistência Médica Ambulatorial) no dia 22 de junho.

O médico da unidade pediu um raio-X, e sem indicativos graves ou presença de febre, ela foi mandada de volta para casa somente com a indicação de remédios para combater as dores.

"Quatro dias depois, as dores ficaram mais fortes e tive febre. Voltei a buscar ajuda e fui internada no pronto-socorro perto da minha casa, direto para a UTI. Em pouco tempo, tive a confirmação da covid-19."

Com cerca de 25% do pulmão comprometido pela doença, além de 10 dias na UTI, Marli passou mais 21 dias no quarto, sob observação. "Ficava muito enjoada com a azitromicina, um dos motivos que prolongou a internação", conta.

Depois que recebeu alta, Marli, que tem 43 anos e não tem outras comorbidades que a colocassem no grupo de risco para a doença, mal pôde comemorar a volta para casa. Dois dias depois da alta, seu braço direito começou a inchar. "Não conseguia colocar ele para baixo, de tanto que doía. Voltei para lá para perguntar se deveria fazer uma compressa com água quente ou fria", lembra.

"Aí a médica falou, que bom que você voltou, não pode colocar nem quente nem fria, porque isso é uma trombose, devido à covid que você teve. Aí eu falei, nossa, por causa da covid? E ela disse: é."

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Mas mesmo sabendo dos riscos, Marli não quis ser internada e só voltou depois de três dias, quando viu que o quadro não melhorava.

No dia seguinte, ela percebeu o que poderia ter acontecido se não tivesse aceitado a nova internação. Com falta de ar e dor no peito, uma tomografia indicou que os coágulos já não estavam mais somente no braço, mas também no pulmão, causando uma embolia pulmonar. "Se estivesse em casa, sei que não estaria mais aqui", diz.

O quadro não precisou de intervenção cirúrgica e foi controlado com anticoagulantes, mas para ter certeza de que a trombose não havia afetado outros órgãos, o cardiologista recomendou que Marli passasse por um cateterismo, exame capaz de detectar obstruções dos vasos sanguíneos do coração.

Para isso, a paciente foi transferida para outro hospital. Lá, foi detectada uma flebite, inflamação da parede de uma veia, no braço esquerdo, o que rendeu mais 11 dias de internação. "Mas mesmo com o eletrocardiograma muito alterado, o médico não quis mexer no meu coração. Ele disse que, por conta dos remédios anticoagulantes, havia o risco de eu sangrar até a morte com o procedimento", conta.

"[...] eu pensei que eu não fosse nem pegar [...] quando a médica me falou que eu tava com covid, que tava 25% do pulmão, eu comecei a chorar e entrei em desespero, porque pensei que fosse morrer."

Embora não tenha sofrido tantas complicações, o marido de Marli também foi infectado e passou seis dias na UTI. "Depois, ele me acompanhou quando era possível e me deu forças. Também recebi muitas mensagens especiais de familiares e amigos", diz.

Hoje, ela passou a sofrer de hipertensão - não se sabe se por ação da doença ou uso de diferentes medicamentos - e continua tomando as drogas para prevenir a formação de novos trombos e, mesmo após meses, também não sente cheiro ou gosto dos alimentos. Além disso, pela presença de sangue na urina, parece ter sofrido uma alteração renal, o que os médicos ainda estão investigando.

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Se pudesse definir sua experiência com a covid-19 em uma palavra, Marli diz escolher "traumatizada".

"Muito medo de morrer, porque quando eu fiquei na UTI, morreram duas mulheres da minha idade, aí eu pensei, meu Deus do céu, eu vou morrer, passei mal, me senti mal, aí aquele pensamento ruim vem, parecia que eu ia morrer..."

"Apesar de tudo que ainda tenho que tratar, acredito que o pior já passou. Sou uma sobrevivente."

Sequelas, complicações e sintomas persistentes pelo corpo


Olhos

  • Embaçamento visual
  • Conjuntivite
  • Lesão na retina


Cérebro

  • Dor de cabeça
  • Tontura
  • Perda de olfato e paladar
  • Confusão mental
  • Convulsão
  • AVC
  • Trombose cerebral
  • Síndrome de Guillain-Barré

Pulmão

  • Dor e tosse persistentes
  • Pneumonia
  • Fibrose pulmonar
  • Tromboembolia pulmonar
  • Pneumotoráx
  • Abscesso de pulmão


Coração

  • Cardiomiopatia de Takotsubo
  • Miocardite
  • Arritmia cardíaca
  • Choque cardiogênico
  • Isquemia
  • Cor pulmonale agudo (forma de insuficiência cardíaca)

Fígado

  • Aminotransferase elevada
  • Bilirrubina elevada


Pâncreas/sistema endócrino

  • Hiperglicemia
  • Cetoacidose diabética (produção de ácido sanguíneo em excesso)


Rins

  • Proteinúria (valores altos de proteína na urina)
  • Hematúria (presença anormal de eritrócitos na urina)
  • Insuficiência renal aguda


Intestino

  • Dor abdominal
  • Diarreia
  • Vômito/náusea

Músculos

  • Mialgia (dor no músculo)
  • Sarcopenia (perda de massa, força e função muscular)
  • Caquexia (síndrome metabólica caracterizada pela perda muscular)


Sistema vascular

  • Trombose


Pele

  • Petéquia
  • Livedo reticular
  • Urticária
  • Rash cutâneo (vermelhidão)
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Como apontamos no quadro de Damião, uma das possíveis explicações para a trombose causada pela covid-19 é a reação exacerbada da defesa do organismo quando entra em contato com o novo coronavírus. Durante o desencadeamento das respostas imunes, há uma emissão de sinais entre as células, o que leva à ativação de coagulações, causando fenômenos trombóticos.

Outra hipótese é que o Sars-CoV-2 também pode infectar as células que revestem a parede interna dos vasos sanguíneos, provocando alterações no mecanismo de coagulação, levando a um quadro de hipercoagulabilidade, com a formação de trombos que podem causar amputações, infartos e hemorragias.

Publicado em 13 de novembro de 2020


Reportagem: Giulia Granchi
Fotos: Mariana Pekin
Edição: Bárbara Paludeti
Edição de Fotografia: Lucas Lima
Infografia: Erika Onodera
Direção de arte: René Cardillo


Fontes consultadas: Isabel Chateubriand, coordenadora médica da reabilitação do Hospital Sírio Libanês (SP); Caio Lamunier, dermatologista do HC-SP; Pedro Farsky, cardiologista do Hospital Albert Einstein (SP); Mauro Gomes, chefe da equipe de pneumologia do Hospital Samaritano de São Paulo; e Saulo Nader, neurologista do Hospital Albert Einstein.